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Cruzeta: um lugar de alma sonora

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Ramon Ribeiro
Repórter

Quando o maestro Humberto Dantas frequentava Cruzeta na infância, no início dos anos 1970, a cidade tinha em torno de dois mil habitantes, era predominantemente agropecuária e, em se tratando de lazer, a grande atração era o Açude Público Municipal – um dos marcos históricos do lugar. “A grande alegria do cruzetense é a sangria do açude. Até missa é rezada na ocasião”, conta Humberto, também conhecido como Maestro Bembem. Nascido em Acari, tendo crescido na zona rural de São José do Seridó, foi em Cruzeta que fez morada.
Local de encontro de três rios, município da região do Seridó já não possui mais  águas esplendorosas
Local de encontro de três rios, município da região do Seridó já não possui mais  águas esplendorosas

Hoje, Cruzeta conta com mais de oito mil habitantes, a agricultura continua em destaque, mas não chega a ter o papel que tinha antes. O açude não perdeu sua importância, apesar de infelizmente seco. No entanto, algo especial surgiu de modo que transformou profundamente a cidade, pelo menos culturalmente: a Filarmônica de Cruzeta, ou simplesmente Banda de Cruzeta.
Projeto sociocultural com jovens criado em 1986 – e desde 88 regida por Bembem – a banda leva o nome da cidade por onde se apresenta, sendo admirada internacionalmente como exemplo de ação de inclusão social por meio da música. Com três décadas de atividades, a banda incutiu na população de Cruzeta o gosto pela música, fazendo do município um ponto musical no mapa do Rio Grande do Norte.

“A banda hoje é um parte da cidade. Somos bastante requisitados na região, tocamos em casamentos, festas de padroeira e muitos outros eventos. Temos instrumentos e repertório próprios, fazemos pesquisa. Muitos dos jovens que já passaram pela banda hoje são músicos no exterior, são regentes em outras bandas pelo estado”, conta o maestro orgulhoso. “Fomos a primeira banda da região a trazer a discussão da cultura, da inclusão social, para dentro dos ensaios. Somos praticamente uma liderança para as outras bandas do interior. Assumimos naturalmente essa batalha e lutamos pela manutenção de todas as bandas”.

O ouro branco mocó
Eu morava em São José do Seridó e visitava meu pai em Cruzeta nos fins de semana. Era uma cidade pequena, a grande referência econômica era o algodão mocó, nosso ouro branco. A principal atração era o Açude Público. O futebol outra distração. Toda comunidade rural tinha um time. Nos fins de semana à tarde as partidas mobilizavam os moradores.

Festas típicas
As festas de padroeira eram o ponto de convergência da região. Todo mundo comprava roupa nova, muitos só tinham essa festa para ir no ano todo. As opções de lazer eram poucas. Em Cruzeta nossa padroeira é a Nossa Senhora dos Remédios. Mas o maior evento antigamente era a Festa da Colheita, todo mês de julho. Tinha esse lado de enfatizar a questão rural. Aconteciam desfiles, bandas da região tocavam, as pessoas levavam para a feiras suas próprias comidas, faziam pratos típicos. Há 50 anos é comemorada, mas não mais com a força de antes.

Episódios marcantes
Lembro da tragédia de Seu Emílio. Aconteceu no início dos anos 1970. Ele era um trabalhador como qualquer um. Assassinou a mulher, os cinco filhos e depois se matou. Eu era pequeno e lembro que aquilo chocou toda a cidade. Ainda na década de 70, a seca marcou muito, nem chega aos pés da que vimemos hoje. As pessoas viravam mendigos.

A força do rádio
Minha formação musical começou com o violão da minha mãe e com o rádio. Nos anos 70 tocava de tudo, Jackson do Pandeiro, Roberto Carlos, Raul Seixas, Luiz Gonzaga. O rádio naquela época, nas cidades do interior, era mais importante do que a televisão é hoje. As pessoas se reuniam para ouvir a programação. Lembro da rádio rural de Caicó, do noticiário para os trabalhadores do campo, da música dos repentistas.

O menino vira músico
Em 1976 foi criada a banda de São José do Seridó. Meu primeiro maestro foi Urbano Medeiros, hoje mora em Minas Gerais, é grande saxofonista. Os ensaios eram duas vezes por semana. Eu ia a pé. Estudava trompete. Minha  rotina passou a ser escola, futebol, trabalhar no sítio e estudar música. Criança não tem sonho, tem curiosidade, expectativa. Só adulto entendi que o que mais queria na vida era aquilo. E hoje posso dizer que sou realizado.

O músico vira maestro
Fui para Mossoró me formar como técnico agrícola. Morei na Casa do Estudante. Entrei em contato com outros jovens que tocavam instrumento. Formei grupos musicais, me envolvi com o movimento estudantil. Em 1986, vim para Cruzeta participar da criação da banda. O primeiro maestro foi Ubaldo Medeiros, irmão de Urbano. Dois anos depois, assumi a regência e estou até hoje.

Cidade musical
A musicalidade é muito forte no Seridó. Em aniversários, festas, até em enterros, são chamadas as bandas do município para tocar. Em Cruzeta, não é difícil encontrar famílias que tenham pelo menos um músico. É natural caminhar pela cidade e ouvir alguém tocando em casa, o som saindo pela janela. Principalmente crianças estudando algum instrumento, flauta doce, violão, cavaquinho. Como em todo o estado, o lugar também está ficando perigoso. Mas não deixa de ser inspirador. Temos um por-do-sol maravilhoso. Os cruzetenses têm uma quedinha para a arte. Vivemos em uma cidade encantada. Somos berço de música, fé e de esperança. Quem bebe da nossa água não esquece.

A força da cultura
Cruzeta deveria rever as tradições com mais autenticidade. Modernizar demais as coisas às vezes descaracteriza. Para a cidade ser completa, é preciso falar mais de educação, cultura e arte. É com isso e não com construções de mais cadeias que muda uma sociedade. Tem que haver uma convergência entre todos os cruzetenses para buscamos maneiras de dar mais oportunidades aos jovens e ao mesmo tempo em que se descobre talentos.

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