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De Matrix aos precatórios

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Luciano Ramos – procurador-geral do Ministério Público de Contas do RN

Na minha vida acadêmica, uma das palestras que mais me impressionou foi sobre responsabilidade civil do Estado, cuja ideia fixou-se de tal forma nas minhas lembranças que se dissociou até mesmo do nome do autor, a quem peço desculpas por não poder citá-lo apropriadamente. Lá se vão alguns anos e a parede da memória acaba por compactar as informações.

Surpreendeu-me a guinada de perspectiva, pois é inerente à matéria tratar de conduta estatal danosa, dano, nexo causal, responsabilidade objetiva, responsabilidade subjetiva e tantas outras coisas que vemos nos manuais de Direito Administrativo. Mas, nada disso foi abordado, nenhum dos pilares clássicos deste instituto jurídico foi sequer mencionado. Ainda assim, foi o quadro mais realista que já vi um autor pintar sobre a responsabilidade civil do Estado.

Inicia o palestrante por afirmar que ela simplesmente não existe, sendo uma mera cortina de fumaça posta diante dos nossos olhos para que não enxerguemos a realidade. Assemelha-se à Matrix, uma prisão para distrair a mente enquanto somos escravizados. E onde está a base de tão drástica conclusão? Em uma inexorável constatação, o Estado não se vê obrigado a pagar suas dívidas com precatórios e o cidadão pode fazer muito pouco diante do Leviatã.

Ou seja, a atuação ou a inércia do Estado provocam prejuízos a um indivíduo, ele tem que acionar o Poder Judiciário, aguardar anos até que o seu direito seja reconhecido e, após obter a certificação de que é obrigação estatal lhe indenizar, então, ele cairá no limbo dos precatórios, pois o sistema não comporta a execução direta dos bens públicos, tal qual ocorreria se o devedor não fosse o Poder Público com suas prerrogativas.

O sistema em si não está incorreto, tendo em vista que o Estado possui o seu procedimento próprio de planejamento das despesas e há de conciliar este interesse individual legítimo – ver-se ressarcido dos prejuízos que a Administração Pública lhe causou – com os demais interesses públicos supridos pela mesma fonte das limitadas receitas públicas. Não haveria qualquer problema, acaso determinados governantes não se regessem pela máxima: “devo, não nego! Não pago enquanto puder!”

O contexto histórico da palestra era a iminência de um Emenda Constitucional cirurgicamente preparada para aliviar a dívida dos estados com precatórios, o que, em bom português, significou que os credores para receberem algo tiveram que engolir que receberiam menos.

Os anos se passaram, e somos transportados para o Rio Grande do Norte 2014, onde a rolagem de dívidas com precatórios cheira à ausência de responsabilidade civil do Estado, com o agravante de que a dívida fundada – esta que ultrapassa vários exercícios financeiros -, especialmente com precatórios não honrados no tempo devido, insiste em dar saltos triplos mortais carpados.

Some-se R$ 22 milhões em 2013, R$ 87 milhões que tudo indica que iremos driblar em 2014, mais o endividamento de anos anteriores, e a ausência de responsabilidade civil do Estado no RN já beira os R$ 300 milhões, sem esperança de dias melhores.

A tal ponto parecem fechados os caminhos ordinários para concretizar o que determina a lei, que o Presidente da OAB/RN, Dr. Sérgio Freire, acaba de exortar o Ministério Público de Contas do Rio Grande do Norte a novamente mudar o prisma de análise dos precatórios, diante do contexto vivido em território potiguar.

Se é certo que o pagamento de precatório é uma das faces da responsabilidade civil do Estado, o seu sistemático não pagamento, inclusive com a possibilidade de que se esteja empurrando com a barriga até que venha uma nova Emenda Constitucional salvadora, pode e deve ser visto pelo ângulo da responsabilidade fiscal, pois o peso desta dívida sem fim pode acabar por achatar as finanças públicas de maneira irremediável.

Sob esta nova perspectiva, qual a solução para o problema? E, mais uma vez, vem à mente o filme Matrix: “há uma enorme diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho”. Por enquanto, mostrou-se uma nova porta, mas o ideal é que não seja necessário atravessá-la.

Oxalá tudo se resuma a uma tempestade passageira e retornemos ao trilho da responsabilidade civil.

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