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Deficientes que superaram a própria limitação

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GARRA - Maria das Graças aprendeu a usar os outros sentidos

Visão, audição, tato, olfato e paladar. O que você diria se descobrisse após alguns anos de vida que vai perder algum dos seus cinco sentidos? Pensaria ‘o que fez para merecer um problema deste tamanho’? Se deprimiria? Buscaria ajuda? Difícil saber como se comportaria em tal situação sem passar por ela. Até porque, esse é o tipo de problema que normalmente “só acontece aos outros”.

Todos passam por problemas pequenos, medianos ou grandes durante a vida, mas poucas pessoas sabem lidar com uma notícia ruim. Geralmente, o caminho mais fácil é se colocar no papel da vítima e esperar ajuda sabe-se lá de onde ou de quem.

O vitrinista de óticas Rogério Guedes tem apenas 5% da audição de um dos ouvidos e é completamente surdo do outro. Descobriu que tinha uma deficiência auditiva degenerativa aos 10 anos de idade. A comerciante Maria das Graças*, que tem apenas 10% da visão de um olho e 5% da visão do outro, percebeu a doença mais tarde, aos 26 anos de idade. Para ambos, a notícia foi um grande golpe em suas vidas, mas eles escolheram não se lamentar, apesar de terem passado por uma situação aparentemente complicada de se superar.

“Eu não queria ter perdido a visão. Acho muito mais complicado para se virar sozinho, a pessoa acaba dependendo mais dos outros do que quando é surdo”, diz o vitrinista, minimizando a própria situação. A comerciante Maria das Graças prova, com um bom humor de causar inveja, que é possível sim se virar sozinha.

Embora pessoalmente seja praticamente impossível notar a deficiência, ela garante que não enxerga quase nada. “Quando olho diretamente para você só enxergo uma mancha branca. Não consigo discernir cores nem formas”, descreve ela, ressalvando que ainda tem um pouco da visão periférica, e assim, consegue distinguir uma pessoa da outra, geralmente pela cor da roupa. Mas nada com tanta clareza.

Ela conta que percebeu a deficiência quando estava dando comida ao filho de uma vizinha e levou a colher até o nariz da criança. Na época já havia alguns meses que percebia  umas manchas azuis na visão que sumiam repentinamente. Quando soube que perderia a visão gradativamente ficou, de fato, psicologicamente abalada. “Na hora achei que não fosse dar conta. Imagina descobrir isso aos 26 anos de idade?”.

“Foi bastante difícil. Eu trabalhava com mil coisas ao mesmo tempo e o médico disse que eu estava proibida de exercê-las. Achei que não fosse poder fazer mais nada. Sempre fui uma batalhadora, mas passei três anos bastante triste e isolada. Com depressão. Emagreci muito, cheguei a pesar 40 quilos. Mas aí pensei que tinha dois filhos e teria que aprender a conviver com o problema para continuar cuidando deles.”

Algo deveras marcante aconteceu para que ela se reerguesse. “Um médico chegou para mim e falou que se eu começasse a me sentir cega teria que sair de muletas do consultório. Aquilo me marcou. E consegui superar a minha deficiência.

  *O nome foi trocado a pedido da fonte.

“Eu sou uma pessoa capaz”

Maria das Graças leva uma vida normal. Após os três anos de choque ao saber da doença, decidiu ir para São Paulo ganhar a vida como vendedora ambulante. “Saía de casa em casa e tinha um monte de clientes. Viajava, vendia coisas do Paraguai. Comecei a me virar”, lembra. Ela destaca que precisou criar os próprios códigos para continuar fazendo o que fazia antes. “Quando ia costurar, passava a língua na agulha para saber onde estava o buraco e passava a língua também na linha para saber onde estava a ponta.”

“A gente acaba desenvolvendo mais os outros sentidos, então eu vou me virando como posso, geralmente com o tato. A única coisa que não consigo fazer direito é ler”, ressalva ela, acrescentando que no trânsito ela presta atenção nos sons dos carros e apela para o pouco que sobrou da visão periférica.

Hoje, Maria das Graças tem uma pastelaria junto ao marido. Ela trabalha cortando massa de pastel, montando, atendendo clientes, passando troco e “o que mais aparecer pela frente.” O marido garante que ela é muito mais ágil que muitos funcionários ‘normais’, que gozam dos cinco sentidos como a maioria das pessoas. Ela criou códigos para medir a massa, para cortá-la sem machucar os dedos e para distinguir as notas de dinheiro. As moedas consegue saber quais são apenas pelo som.

“Mas passo por alguns constrangimentos. Sou taxada de antipática porque, como não revelo a todos que sou cega, algumas pessoas passam pela pastelaria e eu não falo. Só consigo reconhecer pela voz”, lamenta. As pessoas só descobrem que a comerciante é quase cega se ela disser. “Prefiro não contar porque as pessoas podem achar que eu não tenho condições de exercer este trabalho”, esclarece.

A comerciante, que é considerada inválida por lei, assegura que hoje não tem qualquer problema em falar sobre o assunto e que, não se vê sem trabalhar. “Me sinto absolutamente normal. Se você acreditar que é inválido, então realmente você vai ser inválido. Eu não. Eu sou capaz.”

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