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Desafios da dignidade

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Cláudio Emerenciano [ Professor da UFRN]

Cada homem livre possui uma percepção pessoal dos acontecimentos que fazem a História. Principalmente na interpretação do que Raymond Aron (notável pensador e visionário francês) chamava de “História do Presente”. O que mais nos move, inspira e condiciona? Certamente a fé, ideais, sentimentos, aspirações, valores éticos e morais, sonhos e, até, fantasias. Mas ideologias fanatizaram e dominaram em parte do mundo no século XX. Pretenderam tudo substituir. Houve, nessa conjuntura, que abrangeu décadas, episódios infames: a destruição em fogueiras públicas, numa evocação dos espetáculos no Circo Máximo em Roma Antiga e das imolações monstruosas da Inquisição, da queima das obras de mais de cem mil autores na Alemanha nazista, inclusive Goethe. Entretanto, após a Guerra, tornou-se emblemática e impiedosa a repressão a Boris Pasternak e Alexander Soljenitsin, respectivamente confinados na Sibéria e proibidos de receber o Prêmio Nobel da Literatura. O recebimento da láurea implicaria em cassação da cidadania soviética. Tudo era definido em nome do ditador, do sistema ou da ideologia. George Orwell caricaturou-os em “1984” e “A Revolução dos bichos”. Ninguém os satirizou melhor. Nitti, Ministro da Justiça da Itália Fascista, assim tudo resumiu: “nada contra o Estado, nada fora do Estado, tudo para o Estado”. Não existia cidadão livre. Tampouco opinião pública. Era a “vitória” do medo. O domínio do obscurantismo, da estupidez, da banalização do mal e da submissão. Mas  neste século XXI ainda irrompem ditaduras, como na Venezuela.

O livro do Eclesiastes tem sempre razão: “não há nada de novo debaixo do sol”. A natureza humana foi, é e será sempre a mesma. No período de 1935 a 1939, Winston Churchill foi o único político inglês a denunciar e prever as monstruosidades do nazismo. Ficou só. Seu partido e o governo conservador o hostilizaram. Usaram influência e dinheiro até para derrotá-lo em sua circunscrição eleitoral. Prevaleciam interesses de industriais ingleses, sequiosos em vender aviões e produtos industriais à Alemanha. Churchill chegou a uma agônica situação financeira. Sua esposa, Clementine, ante a falência iminente, cogitou de vender sua casa, que ficava na zona rural de Londres. Churchill arrastou a esposa para uma ampla janela, da qual se descortinavam o campo, as colinas, as relvas, os lagos, os prados, os arvoredos e os povoados. Emocionado disse: “Não posso vendê-la. Daqui contemplo a minha bela e querida Inglaterra. Aqui, na alvorada, ou no crepúsculo, revigoro minh’alma. Torno-me mais inglês todos os dias”. A resistência de Churchill gerou desdobramentos, que resultaram na derrota do nazismo. Narrativas e documentos em “Churchill” de Lord Roy Jenkis. Esses fatos e muitíssimos outros tornaram Winston Churchill o estadista mais estudado e biografado no século XX. David Bercuson e Holger Herwig produziram um livro fantástico e revelador: “Um Natal em Washington” (o encontro secreto de Roosevelt e Churchill na Casa Branca, que mudou o mundo). Churchill, nesse Natal de 1941, hóspede na Casa Branca, sofreu um enfarte, às vésperas de falar aos congressistas. O caso ficou em sigilo absoluto entre Churchill e seu médico. Um fato hilário: Roosevelt entrou inopinadamente nos aposentos de Churchill. Surpreendeu-o na banheira. Churchill se levantou sem toalha e sentenciou: “Como vê, senhor Presidente, nada tenho a lhe esconder”. Não foram apenas parceiros, mas amigos.

Não escondo sentimentos que a noite me inspira. Sou peregrino da noite.  Ainda criança, a noite fecundava minha imaginação, reanimada pelas fantasias, entre outras, de Hans Christian Andersen, Charles Dickens, Monteiro Lobato, Rafael Sabatini, Julio Verne, Mark Twain, Robert Louis Stevenson, Walter Scott e Alexandre Dumas. Também as belíssimas estórias das “Mil e uma noites”, com as quais a “Melhoramentos” fascinava leitores infantis nas décadas de 1940 a 1960. Versões adaptadas por Malba Tahan. As noites chuvosas no Tirol, submetidas à sinfonia dos ventos, que balançavam as árvores, ensombrando durante o dia ruas e avenidas. As imagens, como numa espécie de desenho animado, simulavam um lusco-fusco, que a claridade da lua germinava no sacolejo das flores, das folhas e dos frutos das árvores. Naquele tempo, os postes de ferro da “Força e Luz” tinham em seu topo uma espécie de prato com uma lâmpada comum, de cor amarela. Natal se assemelhava, à noite, em ambientes da Londres vitoriana de Sherlock Holmes, revelados com genialidade por Arthur Connan Doyle. Eram invariavelmente lugares sombrios e enigmáticos.

Nunca fui nem serei solitário.  Em silêncio converso com Deus e comigo mesmo. As crianças da minha e algumas outras gerações, que as sucederam, também assimilaram o peso e a dimensão de um atributo irrenunciável: cristão, membro de uma sociedade livre e civilizada. Sobretudo a dignidade. Adolescente, li “Vidas paralelas” de Plutarco. Inesquecível, em que o historiador e memorialista grego biografa Licurgo, Sólon, Péricles, Alcibíades, Alexandre, Cícero e César. O legado desses homens é atemporal e universal. Cícero, símbolo da dignidade exercida às últimas consequências. Arrostou a falência das instituições republicanas e emitiu juízo de valor de alguma maneira céptico e irônico: “é mais fácil um homem morrer por seus princípios do que viver de acordo com eles”. Enfrentou sem vacilar arroubos do ódio e da truculência.

Abate-se sobre o Brasil uma noite plena em escuridão. Sem ternura. Envolta pelo manto da perplexidade, da frustração e da desconfiança. Uma inércia imobiliza as instituições. Mesmo assim a esperança ainda move a indignação do povo. Resiste, clama e denuncia. Até quando essa erosão ética, moral e espiritual persistirá?

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