quinta-feira, 28 de março, 2024
25.1 C
Natal
quinta-feira, 28 de março, 2024

Desafios existenciais

- Publicidade -

Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN

Muitas são as solidões. Há a solidão do cárcere, do deserto, do sofrimento, da dor, da separação, da perda, da saudade, da nostalgia, da descrença, da discriminação, do preconceito, da injustiça, do medo, do abandono, do descaminho. Há também a solidão do esquecimento, do opróbrio, do ocaso, do exílio, do ostracismo. Mas a pior de todas é a solidão da fuga de si mesmo. Sim! Eis aí uma das piores solidões. Ou, provavelmente, aquela que se converte, ao longo dos tempos, em estigma e condenação: exclusão irreversível e inamovível.  Em que o homem não se reencontra, perde lucidez e desconecta-se do amplo sentido de viver. Não se ajusta. Não se harmoniza, porque sua alma é campo de conflitos, insegurança crescente, acabrunhamento e desilusão. Circunstâncias que semeiam a desesperança. Paradoxalmente, o ódio segrega o homem de si mesmo e da sociedade. A cultura do ódio fanatiza e subtrai aos seus seguidores o senso de humanidade, ou seja, o dom de ver no outro a si mesmo e de ser solidário. Eis o que aconteceu na Alemanha sob o nazismo e em outros países sob o jugo de totalitarismos de direita ou de esquerda. Nessas circunstâncias o homem não é o sujeito e o fim da vida social, isto é, as instituições não existem para servi-lo, mas para usá-lo. O que importa é ser peça de um sistema. Até hoje, em todas as variáveis de regimes totalitários, aplicou-se a máxima de Nitti, ministro da Justiça de Mussolini: “Nada contra o Estado, nada fora do Estado, tudo para o Estado”. O escritor George Orwell, no magistral, mas sombrio “1984”, foi premonitório referente à invasão da privacidade do indivíduo com o emprego maciço e planetário, de algum tempo a esta parte, da internet e da televisão. Entretanto, na sátira “A revolução dos bichos” suscita reflexões sobre os privilégios de detentores do poder e seus sequazes num regime totalitário. Confrontam-se os privilégios de poucos e o viver do resto da sociedade. Na década de 1990, o jornalista e político francês Jean-Jacques Servan Schreiber ironizou ao afirmar que a máquina de lavar roupa, exibida por canais de televisão da Áustria e da extinta Alemanha ocidental, sensibilizaram as donas de casas nas repúblicas socialistas próximas às mesmas, aglutinando-as contra o regime político então vigente. Não se exagere, mas, sem dúvida alguma, no psicossocial desses países se plantou o seguinte: “se eles têm, por que nós não podemos ter?”         

Infelizmente, os homens tendem a complicar as coisas. Principalmente nos dias de hoje. Perdem a percepção da simplicidade e se distanciam da Luz. Conduzem seus problemas para fornalhas, que realimentam incertezas, perplexidades, angústias e contradições. Amplificam a submissão ao ver o mundo e a vida sem vínculo com o sentido universal da Criação. Dissociam-se da vida em convergência de uns com os outros. Ignoram os verdadeiros laços humanos, que irmanam todos pela solidariedade e partilha de coisas e sentimentos. Não há humanidade quando o homem abdica ou ignora os elos que o projetam na eternidade. Quando o homem teme, receia, recusa e se envergonha de consagrar o amor, vivenciá-lo, arrasta-se à sua própria degradação. Nenhuma sociedade e nenhuma civilização se perpetuam na História quando os que as fazem revogam de sua existência o primado do amor. Ovídio, grande poeta latino, em suas “Metamorfoses”, advertiu, metaforicamente, que os homens criam dentro de si paraísos e infernos. O tema foi retomado na aurora da Renascença por Dante Alighieri na “Divina Comédia”. Mas, no século XIX, o dinamarquês Soren Kierkegaard (filósofo) questionou emoções e sentimentos individuais, confrontando-os com as circunstâncias da vida. De certa maneira, foi o precursor das correntes existencialistas do século XX.             

A solidão não é apenas fonte de confusão. Ela também fortalece a alma que busca a fé. Em um dos livros mais verossímeis sobre crise de fé, “O Poder e a Glória”; Graham Greene imerge nas desventuras de um padre em conflito. Lá nas Antilhas. Contudo, em plena solidão, ele proclama: “Eu tenho fé porque quero ter fé”. Reafirmara-se sua opção. A partir daí reencontra o Cristo. Restaura a vida em ato de vigorosa fé. Aquele homem, até pouco tempo perdido no vício (alcoolismo) e na solidão de conflitos emocionais e espirituais, desfruta uma metamorfose. Testemunha de novo sua fé. O livro foi transposto para o cinema com uma interpretação soberba e inimitável de Spencer Tracy. Provou que essa temática, complexa e intimista, também é prioritária para o teatro, o cinema e a televisão. E Orson Wells em “O processo” (1962), inspirado em Kafka, e em suas obras-primas “Cidadão Kane” (1941), “A marca da maldade” (1958) e “Soberba” (1942), revolucionou a arte cinematográfica em todos os sentidos. Genialidade insuperável.

Mas tudo na vida se passa numa cidade, num lugar. Até num lugarejo distante e esquecido no “nada”. Porque, como disse Anatole France em “Thais”, o anacoreta (eremita) pode estar em fuga de si mesmo ou ter medo da convivência social. Esse amálgama entre o homem e a sociedade foi detectado por Malraux em “A Esperança”. Mesmo na Guerra Civil, brutal, quando o domínio de Toledo oscilava, ou se alternava, entre republicanos e falangistas (fascistas), havia uma preocupação em poupar os monumentos históricos da cidade. Porque o passado e a cultura da cidade são impessoais e intemporais. Testemunhas da marcha civilizatória de uma cultura.

Toda cidade possui seu compromisso. Alimenta-se do seu sentido. Esse sentido é uma entidade espiritual. Está nos corações e nos sentimentos dos que ali nascem, vivem e morrem. A concepção de vida, em qualquer pessoa, emana dos seus liames com a cidade, um lugar ou uma região. A cidade fornecerá os elementos necessários à sua inserção numa realidade maior: a nação. Até numa dimensão universal. Mas o amor é fonte e caminho de sua felicidade. Sempre. Vínculo eterno entre Deus e o homem.

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas