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Desenhista de ilusões

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Michelle Ferret – repórter

Um detalhe da cortina do personagem pode revelar sua personalidade. Os assentos da casa onde reside Xica da Silva ou Garrincha mostram um pouco do jeito deles. E assim os diretores de arte desenham realidades, criando aos olhos do público mundos virtuais que já foram reais um dia… ou não. É com esse material humano – retirado de profundas pesquisas ou até mesmo da memória – que Sérgio Silveira trabalha.

Com mais de 40 filmes nacionais e até estrangeiros na bagagem, como “Xica da Silva”, “Estrela solitária” (Garrincha), “Eu sei que vou te amar”, “Ele, O Boto”, “O dia da caça”, entre tantos outros, Sérgio acaba de chegar de Aracaju, onde esteve por um ano filmando “O Senhor do Labirinto” sobre a história de vida de Artur Bispo do Rosário. Este mês ele está em Natal – de passagem para o Ceará – hospedado na casa do maquiador Amaro Bezerra, que o considera um grande mestre. “Estou aqui para recompor minhas energias e tomar um banho de cultura com Amaro Bezerra, este grande homem que reestrutura as nossas psiquês violadas no mercado”, disse Sérgio que recebeu a equipe do VIVER na residência de Amaro.

Figurino de Lana Benigno reproduz com detalhes o manto do Bispo do Rosário, personagem do “Senhor do Labirinto”
Sérgio está em Natal em companhia da esposa Lana Benigno e dos filhos. Lana é figurinista e trabalha com cinema, assinando figurino de filmes como “O Senhor do Labirinto” e “Estrela Solitária”. Juntos, eles recriam vidas e parecem ter energia recarregada para mais mil filmes pela frente. Sempre pensando em novos projetos, analisando roteiros e viajando em novas possibilidades, Sérgio e Lana acreditam que o cinema brasileiro ainda precisa evoluir muito para conseguir colocar na tela a identidade do povo. “Fazer cinema é uma loucura. De repente você passa meses na Amazônia recriando ambientes para que aquela história seja contada, no meio do nada, com pessoas de diferentes realidades. E um mês depois já começa a filmar a vida de Garrincha. Pesquisar sobre sua vida, seus ambientes, seus gestos… Posso dizer que o cinema é um mundo a cada segundo”, disse Sérgio.

Entre a conversa sobre seu método de trabalho, os filmes e os projetos, Sérgio  não polpa elogios ao amigo Amaro Bezerra, a quem ele chama de Amaro Mago Bezerra. E acredita ser ele um mito rico.

“Amaro é para ser fonte de pesquisa para todas as pessoas que desejam a vida. Ele é a fonte viva por onde passou, o que ele fez e faz pelo cinema brasileiro desde muito tempo. É uma pena que na própria cidade em que ele vive não reconheçam este grande homem solicitado em vários países e conhecedor profundo da vida”.

Ao lado do diretor, Amaro ouvia silencioso os elogios, enquanto se ocupava de limpar folhinha por folhinha de suas plantas espalhadas pelo
apartamento.

“Somos abundantemente preconceituosos”

Na visão de Sérgio, o cinema brasileiro ainda é muito preconceituoso com sua história. “Nossa ruína é o massacre indígena e ainda não conseguimos filmar isso de uma maneira digna. Existe um bloqueio. Somos absurdamente preconceituosos, desde quando Gilberto Freyre escreve seus livros até Darcy Ribeiro. Todos nós temos uma culpa em relação à história do País. Trabalhei com chineses, alemães, russos … e percebo que cada diretor quer reinventar seu país. Aqui ainda é tudo aflorado e sair disso é cair numa visão portuguesa comedida. O nosso cinema característico é o cinema da violência, esse cinema de um Brasil espantado com as desgraças que esquece todo o resto do país”, desabafou Sérgio.

Poemas bordados do Bispo do Rosário em Cena

Sérgio e Lana acabaram de sair dos sets de filmagem do filme “O Senhor do Labirinto” que deverá entrar em cartaz em todo o Brasil em janeiro de 2010. E traz, ainda fresca, a delícia que é reinventar a existência de Artur Bispo do Rosário. Enquanto Sérgio recriava o enclausuramento do hospício onde o Bispo viveu por 50 anos – recriando o refeitório, os quartos, os corredores – Lana passava dias e noites fiando junto às bordadeiras os mantos e as escritas em tecidos do Bispo. “Foi um trabalho minucioso e demorado. Fizemos como o Bispo fazia, ele desfiava os tecidos e bordava com as linhas desfiadas seus poemas e desenhos”, contou Lana com seu olhar de menina. Formada em moda, ela iniciou no mundo das artes através do teatro – onde conheceu Sérgio – e logo já assumiu figurinos de filmes importantes na cinematografia brasileira como os já citados na matéria. Lana cria através de raízes da região e materiais originais por cada lugar por onde passa. “O cinema tem uma capacidade social enorme. Ele modifica a vida daquelas pessoas das comunidades e das locações por onde passa”, contou Lana.

Para eles, o cinema é como o circo que por onde passa deixa marcas e reinventa vidas.
Em todos os filmes que Amaro, Lana e Sérgio participaram eles imprimiram em si, alegrias, dores, perspectivas novas e esperança. Mas na visão dos três a maior tristeza é trabalhar por anos a fio num filme e não vê-lo exibido nas telas. “O Brasil produz 100 longas por ano, desses apenas 20 chegam ao mercado e 10 ficam mais de um mês nos cinemas. Essa é uma realidade cruel que coloca o nosso trabalho num patamar de desesperança. Mas enxergamos além e é com a força e paixão por essa reinvenção da vida e da capacidade de registrar virtualmente a existência que continuamos trabalhando por quando tempo for”, finalizou Sérgio recebendo um sorriso de Lana e de Amaro, seus companheiros de profissão e mundo.

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