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Diante da Lei

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Sempre que eu início o semestre com a turma de filosofia do Direito costumo a colocar no quadro, logo na primeira aula a frase atribuída ao jurisconsulto Paulo: “nem tudo que é legal é honesto”. Não encaro essa frase como um lema a ser seguido de modo automático, mas como uma lembrança.

A confusão que alguns colegas da área jurídica estabelecem entre Lei e Direito é produto de um determinado modo de ser enxergar o próprio direito. De um modelo explicativo do direito que, na verdade, esconde um interesse ideológico fundamental. A idéia de que a Lei é a fonte primordial do direito e de que todo direito se manifesta através de um ordenamento jurídico, unitário, ordenado e completo, faz parte do hall de propostas políticas que nasceram na virada do século XVIII para o XIX e que criam as bases para o surgimento do Estado Nacional. Vincular as decisões judiciais ao imperativo da lei oferece alguma segurança jurídica, isso é bem certo, mas cria uma relação de subserviência que acaba contaminando o desempenho do poder judiciário e transformando-o numa sucursal avançada de todo um conjunto de valores e de interesses políticos que se escondem por trás da figura gasosa do Legislador (essa abstração estranha e inefável que, dizem, representa a vontade geral, a minha e a sua, amigo leitor). O fato é que, ao menos nos sistemas jurídicos de tradição neo-romana, a idéia da Lei como fonte primordial do direito colou como “super-bond” na boca de menino danado. Essa mitologia de que o respeito a Lei justifica as maiores atrocidades morais poderia ainda estar em alta no mundo, se Hannah Arendt não tivesse feito a cobertura do julgamento de Einrich Eichmman, administrador do campo de Auschwitz e escrito o seu livro clássico (Eichmman em Jerusalém) para denunciar aquilo que chamou de “a banalidade do mal”. A idéia de que, ao agir de acordo com a lei de seu Estado-nacional, Eichmman não estaria cometendo nenhuma ilegalidade, mas apenas cumprindo seu dever de cidadão e funcionário público exemplar que segue a risca as metas de matar a maior quantidade de seres humanos no menor tempo possível. O deslize moral que o apego cego a qualquer tipo de legislação produz é o afastamento da idéia de justiça. Ao confundir o que é legal com o que é honesto o jurista produz uma distorção conceitual que, na maioria das vezes, só serve mesmo para sacrificar o direito no altar do poder.

Num país como o nosso, no qual a legislação sempre foi um instrumento que serviu mais a quem controla o Estado do que ao povo, esquecer a frase de Paulo pode ser até bem cômodo. Afinal, para que se insurgir contra o que é estabelecido? Quem vai conseguir passar num concurso público para seguir a carreira de magistrado se preocupando com a idéia de justiça e esquecendo de decorar as normas dos códigos e as discussões dogmáticas sobre institutos jurídicos? A banalidade do mal é um tipo específico de esquecimento. Um tipo fatal de vazio moral que acomete de vez em quando os funcionários do Estado. Essa banalidade começa quando o cidadão abdica de seu discernimento e se ajoelha diante da Lei, como no conto homônimo de Franz Kafka. Quando isso acontece com alguém que não tem poder, vá lá… o dano não é tão grande. Mas quando aqueles que devem falar em nome da justiça esquecem o caminho que leva a ela e se perdem pelo meio da estrada, aplicando de modo automático a legislação sem compreender que o direito é muito maior que os códigos, então o dano social é muito mais grave. Não quero que meus alunos esqueçam de estudar as leis de seu país, nem que eles abandonem o estudo dos códigos e da “doutrina” (acho terrível esse nome, mas, fazer o quê) hegemônica. Gostaria apenas que eles, quando sentarem na cadeira dos magistrados, não cometam o erro de Eichmman e sacrifiquem o seu senso de justiça em troca do poder que, aparentemente (e muitas vezes ilusoriamente), aquela cadeira oferece.

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