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Dor e trauma sobrevivem à “Chacina de Barreiros”

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Aura Mazda
repórter

Duas décadas se passaram, desde que o distrito de Santo Antônio dos Barreiros, em São Gonçalo do Amarante, ficou marcado por uma chacina mundialmente conhecida. Histórias que ficaram cravadas não só nas páginas de jornal, como também na vida da população do pequeno povoado. Vinte anos depois, o que se encontra no lugar é o luto insuperado de familiares, o trauma que não passa, a tentativa – as vezes em vão – de seguir sem um parente que teve a vida ceifada por Genildo Ferreira de França, o “Neguinho de Zé Ferreira”, de 27 anos.
Chacina de Barreiros completa 20 anos
Chacina de Barreiros completa 20 anos

São lembranças que desafiam o tempo e se mostram vivas em cada esquina, rua ou memória de quem sobreviveu para contar a história. A reportagem da TRIBUNA DO NORTE esteve no pequeno distrito na manhã de quarta-feira (17), e percorreu os caminhos que Genildo fez para executar o plano de vingança contra “desafetos”, em uma caçada que começaria na tarde de 21 de maio de 1997 e só teria fim com a morte do “assassino em série”, como foi chamado à época, no dia seguinte. Parentes, amigos e familiares também foram ouvidos.

No distrito dos Barreiros, os mais velhos não tiram da memória o dia em que a pacata comunidade virou um cenário de guerra. Os mais novos escutam as histórias  e pedem explicações. No livro de memórias de São Gonçalo do Amarante, um capítulo é reservado para o dia em que “Neguinho enlouqueceu”, como definiram os familiares.
Vários policiais atuaram no caso
Vários policiais atuaram no caso

Vinte anos depois do ocorrido, todos no distrito conhecem a história do massacre promovido por  Genildo Ferreira de França, mas poucos arriscam dizer  qual motivo fez “Neguinho de Zé Ferreira” tirar a vida de 15 pessoas, incluindo a própria. Uns falam que ele ficou traumatizado com a morte do filho Iure, de 5 anos, outros contam que a motivação foi a suspeita de que estariam o chamando de homossexual, ele teria ficado ofendido e queria se vingar de quem estava fazendo a “fofoca”. Nos Barreiros, uma única certeza paira entre todos que viveram aquele dia: Genildo era uma pessoa simpática, gentil e educada.

Alguns familiares se mudaram do local, o filho mais novo vive em Natal. O pai, Zé Ferreira, vive sob o efeito de antidepressivos e remédios para a pressão. Ele pediu para não falar com a reportagem por “sentir muita dor”, sempre que fala do filho. “Todo mundo tem uma lembrança daquele dia”, disse um rapaz que estava sentado na calçada ouvindo o pedido de entrevista.
Crime chocou a cidade
Crime chocou a cidade

“Aquele dia ficou gravado na mente de todo mundo dessa cidade”, disse a prima Lourdes. Ela conta que após o episódio, a população passou a criticar os familiares de Genildo. “A avó ‘do mensageiro da Telern’ esculhambou comigo quando eu tava varrendo a rua. Até hoje a gente lembra disso. Falo que sou prima dele porque aconteceu e não tem como mudar. Neguinho é uma pessoa que se foi mas a gente não esquece nunca. Após a tragédia, o pai ficou com diversos problemas de saúde. Aquilo foi coisa do demônio, que incorporou nele. Depois que a criança morreu, foi mesmo que ter matado ele, era louco pelo menino.  Até hoje, a história dele marcou nossa família”, conta Lourdes.

Após a chacina, corpos foram levados em caçambas do ITEP e velados no ginásio do distrito. Uma multidão acompanhou de perto o desfecho da tragédia.  O enterro de Genildo Ferreira de França levou muitos curiosos ao cemitério do Bom Pastor 2, no bairro do Bom Pastor, onde ele foi sepultado como indigente. Hoje, ninguém sabe a localização do túmulo. “Deixo um forte abraço e um beijo para toda minha família não importa a religião, mas que todos se reúnam e construam uma forte corrente de oração para que Deus tome conta da minha alma”, escreveu Genildo em uma carta. 
Homem matou diversas pessoas e aterrorizou localidade
“Foi o pior filme de terror que os meus olhos já viram”

O agricultor  José Divaldo, 53 anos, estava no meio do  expediente de um dia trabalho como qualquer outro, em roçado há poucos metros da comunidade de Santo Antônio do Potengi, quando ouviu o alerta vindo de uma pessoa que passava na rua: “Neguinho está perturbando, venha ver”. Quando chegou na rua Antônio Oscar Pereira de Brito, onde mora até hoje com a família, José se deparou com dois cadáveres na varada da casa da frente. Era a ex-mulher e a sogra de Genildo Ferreira de França.
José Divaldo, agricultor
José Divaldo, agricultor

Apesar de ver os cadáveres e ouvir os gritos na rua de que “Neguinho de Zé Ferreira estava matando o povo”, o agricultor não acreditou. Os dois tinham trabalhado juntos por muito tempo em um depósito de construção. Na cabeça de José, a pessoa que conhecia, descrita como “um cara legal, simpático e de bom coração”, não seria capaz de cometer crimes de tamanha barbaridade. “Quando eu vi aquela cena, parece que eu não pisava nem no chão. Foi o pior filme de terror que os meus olhos já viram”, lembra o agricultor.

Aterrorizado com a possibilidade de ser a próxima vítima de Genildo, o colega de trabalho se trancou em casa com a família, onde permaneceu até ouvir, pela televisão, que o assassino em série tinha morrido.  “Ele enganou todo mundo. Ele chamava as pessoas, dizendo que ia fazer uma coisa, e depois matava. Ninguém desconfiaria que Neguinho fosse fazer alguma coisa ruim dessas. Na quarta-feira, eu estava na calçada de manhã cedo, ele passou por mim e comentou que o sol tava quente, normal. Eu nunca ia pensar que ele fosse fazer aquilo, ninguém pensava. Aquele foi um dia que eu jamais vou esquecer na minha vida. Ninguém se esquece mais aqui nos Barreiros”, disse José Divaldo.

“Depois que vi ele matando o policial, perguntei se ele estava louco por fazer aquilo”

“Ele me dava um abraço apertado quando passava por mim e me chamava carinhosamente Lourdinha,  vinha confidenciar os casos amorosos com muitas mulheres e contar como era difícil a vida sem o filho que mataram”. Essa era a lembrança mais nítida que Maria de Lourdes Ferreira de França, 53 anos, tinha do primo Genildo Ferreira de França, até o dia 21 de maio de 1997, quando Genildo matou um sargento da polícia na frente da prima.
Maria de Lurdes Ferreira de França, prima de Genildo
Maria de Lurdes Ferreira de França, prima de Genildo

Ela lembra que estava saindo para trabalhar, quando viu o primo apontar uma arma na direção de um homem que estava próximo de uma viatura da polícia. “Depois que vi ele matando o policial, perguntei a Neguinho se ele estava louco por estar fazendo aquilo. Foi Deus quem me livrou, porque eu tentei impedir que ele matasse mais pessoas. Mas não adiantava”, disse.

A justificativa para o primo ter cometido a chacina divide a opinião de Lourdes. Ela acredita em duas hipóteses. A primeira é de que “Neguinho” teria sido “possuído pelo demônio”, porque segundo a prima, ele pulava de telhado em telhado com uma criança pesada no colo e “desaparecia sem explicação”. O segundo motivo que teria feito Genildo cometer os crimes, seria a morte do filho Iure, de 5 anos. “Ele nunca superou aquilo, se tornou uma pessoa diferente, a gente percebia”, contou a prima.

Filho fora do casamento de um dos herdeiros da família “Matoso”, que possuía grande parte da terra e foi uma das responsáveis por fundar o povoado de Santo Antônio dos Barreiros, José Ferreira, pai de Genildo Ferreira, nunca recuperou a saúde após a morte do filho. A prima Maria de Lourdes Ferreira de França, 53 anos, conta que “Zé Ferreira” vive a base de remédios controlados. A mãe de Genildo morreu inconsolada pela morte do filho.

“Até hoje aquele dia está marcado na memória dessa cidade””

Vizinha da casa em que Genildo Ferreira morou parte da vida, a dona de casa Maria de Lourdes Ferreira, 62 anos, foi uma das pessoas que escutou “Neguinho” tirando a vida da esposa, Mônica, com dois tiros na cabeça. Ela lembra que após a ação, ele pulou o muro da casa e passou por seu quintal para chegar ao outro lado. “De manhã, a mãe dela, Tereza, chegou chamando pela filha, mas ninguém atendia. Eu sei que o filho dele com Mônica, ele levou para casa de uma prima que criou ele no fim das contas”, lembra Maria de Lourdes.
Maria de Lurdes Ferreira, de 62 anos, era vizinha do assassino
Maria de Lurdes Ferreira, de 62 anos, era vizinha do assassino

A lembrança que Maria de Lourdes tem de Genildo, é de uma pessoa educada e gentil.  “Ele era um ótima vizinho, era um cara educado, se precisasse, ele arranjava.  Ninguém imaginava que ele pudesse ser uma pessoa tão fria”, disse a dona de casa. Ela disse que após a morte do filho Iure, Genildo andava cabisbaixo pelos cantos, triste, mas que não demonstrava comportamento agressivo”, recorda.

Na manhã da quinta-feira (22), sem imaginar que os tiros que tinha ouvido na noite anterior seria na casa ao lado, Lourdes saiu de casa para deixar os filhos no colégio, como em um dia normal. “Quando estava voltando para casa, uma pessoa me disse ‘Dona Lourdes não se aproxime não que neguinho está matando gente’. Quando cheguei ele tinha matado um monte de gente. Aqui na minha casa, todo mundo se escondeu de baixo das camas. A Polícia entrou aqui pensando que tinham se escondido aqui. Até hoje aquele dia está marcado na memória dessa cidade. Nunca pensei que fosse ver uma cena dessa”, disse a vizinha.

“Ele perguntou a Josemberg se estava tudo bem e depois atirou nele”

A dona de casa Antônia Janaína da Costa santos, 32 anos, estava dentro de casa, quando ouviu os tiros que ceifaram a vida do irmão Antônio Josemberg Campelo, de 17 anos.  O mensageiro da Telern,  foi morto após ter cumprimentado Genildo, próximo à esquina de sua casa, na rua Poeta Francisco  Paulo, por volta das 7h30 da quinta-feira. “Ele perguntou a Josemberg se estava tudo bem e depois atirou nele”, lembra a irmã.
Antônia Janaína da Costa dos Santos, irmã de uma das vítimas
Antônia Janaína da Costa dos Santos, irmã de uma das vítimas

A vida da família de Josemberg mudou completamente após o assassinato do primogênito. Dois meses após o crime, o avô morreu com problemas de coração. Até o último dia de vida, a mãe do mensageiro tomou remédios controlados para dormir. O pai, ainda vivo, relata viver um pesadelo sempre que lembra do dia da chacina. “O meu avô, que aparece em uma reportagem desmaiando quando viu o cadáver do meu irmão, morreu de desgosto. Aqui em casa ninguém superou aquilo”, disse Antônia.

A irmã acredita que Josemberg foi morto porque deu um recado para a mulher de Genildo. “Finado Neguinho era amigo da minha mãe. Uma pessoa quase da família. No dia anterior ele passou aqui, conversou com ela e deu carona para a feira. Era uma pessoa boa e conhecida por fazer muitos favores”, disse a irmã. Antônia lembra que no dia do crime, a mãe chegou a pedir que “neném” não fosse trabalhar porque  neguinho estava matando as pessoas.

“Ele disse que iria trabalhar porque não tinha nada a ver com Neguinho. Eu ouvi uns tiros vindo da rua, quando corri vi o meu irmão estirado no chão da rua da minha casa”, recorda Antônia, enquanto segura um retrato do irmão que mandou emoldurar e colocar na parede da sala. Josemberg deixou uma esposa e três filhos.
Genildo Ferreira, o assassino
Genildo Ferreira, o assassino

Memória

Em um dia de fúria – 21 para o dia 22 de maio de 1997- Genildo Ferreira de França, conhecido como “Neguinho de Zé Ferreira”, saiu de casa com uma roupa camuflada, armado e com uma bolsa cheia de munições. Em mente, uma lista com 20 nomes  para onde dispararia os tiros certeiros que vitimaram 14 pessoas em menos de 24 horas.

Para ceifar a vida dos alvos, “Neguinho de Zé Ferreira” usou uma pistola 764 e um revólver calibre 38 com um silenciador. Após cometer os crimes, tirou a própria vida em um lamaçal de uma cerâmica, por volta do meio dia da quinta-feira. Vendo o “cerco” se fechando com a aproximação da polícia, Genildo atirou contra o próprio peito com uma bala de prata, escolhida especialmente para o ato. Os policiais terminaram o “serviço” disparando dez tiros em várias partes do corpo.

Caçado por 100 policiais  militares e 20 civis, Genildo liberou as duas reféns, que vinha usando  de escudo. Entre elas, sua filha, Gislane, de 5 anos, e uma adolescente. “Ele escolheu até a bala que ia se matar”, disse uma das testemunhas à época.  Genildo disse à pessoas próximas que tinha uma lista de inimigos que pretendia matar.

A polícia disse à época que a adolescente que ele pegou como refém não foi morta pelo ex-soldado por um motivo: ela seria testemunha ocular e narraria toda a tragédia. O delegado de Macaíba , Sérgio Leocádio, disse à época que após ouvir o depoimento de vária pessoas era de que Genildo tinha a intenção de tornar o massacre conhecido. “Ele precisava executar um plano mirabolante , que chocasse não só a comunidade de Santo Antônio”, disse Leocádio à época.

Cronologia do crime
20h30 –
Manoel Brito Marcolino, o Manoel Belarmino, é procurado em casa por Genildo, que afirma querer mostrar uma arma, em sua companhia, segue João Maria de Lima. Os corpos foram encontrados em um matagal próximo ao Guariju, em São Gonçalo do Amarante.
00h – Mônica Carlos França, segunda mulher de Genildo, é assassinada enquanto dormia, na cama do casal.
3h – Baltazar Jorge de Sá, padastro de Mônica, é levado por Genildo, que inventa a história do parto de uma vaca. No mesmo momento, também foi assassinado Elias dos Anjos Pimenta.
5h – O comerciante Fernando Corrêa de Sousa atravessa o caminho do assassino quando ia trabalhar, ele foi morto a tiros.
6h – Tereza Carlos, mãe de Mônica e mulher de Baltazar é morto por Genildo, de quem não gostava.
6h20 – Genildo vai até a casa de Valdete, ex-mulher e a mata a tiros. Francisca Neide, mãe de Valdete, aparece na porta e acaba assassinada. Genildo leva consigo a filha Gildene, de 5 anos.
6h50 – O segundo-sargento da PM Francisco de Assis Barbosa, é assassinado quando tentava prender o algoz. O soldado Milton foi baleado.
7h15 – Genildo atira no carro do vice-prefeito, Raimundo Nonato, que foge do local.
7h30 – Antônio Josemberg, mensageiro da Telern, cruza o caminho do de Genildo e é morto a tiros.
7h50 – Flávio Silva de Oliveira, surdo-mudo, é morto a tiros na calçada de casa.

Documentário retrata chacina

Dirigido por Mary Land Brito e Fábio DeSilva, o documentário “Sangue de  Barro” conta uma das mais trágicas histórias da crônica policial. A de Genildo França, conhecido como “Neguinho de Zé  Ferreira”.  Ele, um ex-atirador de elite do Exército, considerado um bom rapaz e um exemplar pai de família, deixou em pânico a cidade de Santo Antônio dos Barreiros (hoje Santo Antônio do Potengi), comunidade de apenas cinco mil habitantes localizada em São Gonçalo do Amarante.

A tragédia se transformou na época em um grande espetáculo da mídia e diferentes especulações sobre sua raiva foram levantadas por jornalistas. Este e outros pontos sobre a morte de Genildo – se foi suicídio ou não – foram levantados no filme.

O documentário apostou nas sonoras, com depoimentos dos familiares das pessoas assassinadas, dos filhos, da mulher de Genildo, de jornalistas, dos sobreviventes que conseguiram sair da mira do matador e de pessoas comuns da comunidade.

O documentário exibe imagens de arquivo para retomar aos olhos do espectador os instantes de busca a Genildo e fazer o público viver aquele momento.

A trilha sonora foi  feita por Gabriel Souto e Gustavo Lamartine. “Sangue do Barro” está disponível no youtube.

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