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Dose dupla de ancestralidade

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Tádzio França
Repórter      
Elas estão alteando a voz para abrir os caminhos. O ritmo e a melodia conduzem o ouvinte a histórias sobre negritude, identidade e gênero. Duas artistas potiguares, mulheres negras, lançaram recentemente novos trabalhos que dialogam bastante entre si: Clara, cantora conhecida da noite local, lançou a música “Força”, e Marília Negra Flor, sob o nome Iyalê, vem com “#SeFechaBranquitude”.  São canções e vídeos que registram em som e imagem o que as respectivas autoras têm a dizer sobre seu lugar no mundo, suas vivências, e sua cor – não por acaso, a mesma.
Ancestralidade é fio condutor na nova vida de Clara
“Força”, de Clara, é a primeira música de trabalho do EP “Volte e Pegue”, seu quinto trabalho em 12 anos de carreira. A canção produzida por Zé Caxangá e DJ Samir é um dub reggae pesado e moderno, no qual a cantora convoca a união das mulheres negras, enquanto discute posicionamentos em frases provocativas como “Tira essa venda dos olhos, homem branco/Veja o farrapo do mundo que nos resta”. “É uma música sobre se fortalecer junto e dar as mãos, é sobre estar perto”, diz.
Mãe preta
“Volte e Pegue” é uma menção ao Sankofa, símbolo africano de um pássaro mitológico que significa “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”. É algo que resume bem o processo que deu origem ao disco, na visão de Clara. Ela conta que ao engravidar no final de 2015, passou a revisitar memórias de infância e adolescência; percebeu que várias delas, as menos felizes, estavam associadas ao racismo. “Foi quando aquela ficha caiu, sabe. Eu me descobri negra aos 33 anos de idade. Eu então mergulhei nesse universo, o meu universo que até então não conhecia”, diz.
A ancestralidade passou a ser um fio condutor na nova vida de Clara. Além de ler e pesquisar, ela também quis vivenciar isso. “Passei a ter mais contato com o candomblé, abri um negócio de acarajé, passei a conviver mais com pessoas negras. E essa descoberta foi para todos os níveis da minha vida, foi transformador, arrebatador, e teria que vir pra musica também, claro”, relata. Todo esse processo que ela vinha internalizando, começou a ser posto para fora.
A música, a escrita e as vivências foram dando forma a “Volte e Pegue”. Ela adianta que serão seis faixas, todas abordando seu atual momento. “É doido o sentimento, porque hoje tenho a sensação que tudo que eu fazia antes não tinha sentido. É como se eu estivesse chegando no mundo só agora. Faz três anos que eu venho nesse processo de estudo, pesquisa e amadurecimento, por isso considero um trabalho potente e bem resolvido”, afirma.
Clara considera que sua autodescoberta tardia como negra é um reflexo do que ocorre no Brasil, e especialmente no Rio Grande do Norte. “Na última pesquisa que vi do IBGE dizia que só 8% da população potiguar se declara negra. E pra mim isso é muito doido, porque moro na Vila de Ponta Negra, saio na rua, e só tem preto. Você anda no centro da cidade e vê muito preto. Acho que falta ver as belezas de nosso povo, porque a gente vive há tanto tempo assim, na ignorância de si mesmo”, diz.  
Para a cantora, a pessoa negra consciente – seja artista como ela ou de qualquer outro segmento – pode e deve plantar a semente do conhecimento na cabeça de outras pessoas negras, de promover o diálogo. “A gente aprendeu a se negar, a se achar feio e inferior. É mais fácil se dizer moreno do que negro. Vivemos ainda os resquícios da colonização escravocrata. A gente morre não só quando a bala nos atinge, mas também quando ligamos a TV e não nos vemos lá”, declara. Clara afirma ser importante conhecer o próprio lugar no mundo. E seu novo disco veio para firmar isso.
Negra flor
Quem já viu o batuque da Nação Zambêracatu, provavelmente teve a atenção chamada pela figura de Marília Negra Flor, a potente voz feminina a conduzir os baques do grupo. No último dia 12 de julho ela lançou o clipe de seu primeiro trabalho solo, a música “#SeFechaBranquitude”. Para a nova empreitada Marília usou seu nome de candomblé, Iyalê, uma palavra yorubá. A música é uma batucada eletrônica com influências de pagodão, funk e rap, na qual a cantora confronta as hipocrisias das estruturas racistas.
Marília Negra Flor, sob nome Iyalê, vem com #SeFechaBranquitude
A música, segundo Iyalê, questiona alguns discursos e práticas que silenciam e oprimem a identidade negra. “A letra demarca a importância das pessoas brancas se reconhecerem enquanto raça para poder olhar de frente para suas práticas racistas”, afirma. Segundo ela, alguns brancos costumam mascarar a discussão sobre racismo com subterfúgios como “sou de terreiro” ou “tenho bisavô negro”. “É uma estratégia para não lidar de frente com o fato de ser branco e não assumir as responsabilidades por seus privilégios históricos”, diz. A música é, enfim, um desabafo.
“#SeFechaBranquitude” foi produzida por Kleber Moreira, renomado percussionista potiguar que pesquisa percussão afrobrasileira há anos, além de integrar o grupo Rosa de Pedra. A música faz parte do trabalho autoral que Marília tem desenvolvido com ele chamado “Motumbaxé, Motumbá?”. A idéia é que se torne um EP, mas devido a produção caseira e independente o processo tem sido lento. O vídeo foi gravado com as participações de vários militantes e artistas negros locais.
Marília deseja que seu trabalho ajude o RN a olhar para sua história através de outras narrativas, de quebrar o apagamento histórico de suas raízes negras e indígenas. “Falta trabalho de base, engajamento nas comunidades, valorização da cultura popular, políticas públicas que nos possibilite construir os nossos espaços, para além de representatividade”, conclui.
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