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É mais brando torturar do que roubar uma televisão

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Edilson Braga – Fred Carvalho

O sistema penal é seletivo como um todo,  e discriminatório,  a polícia tem mais poder do que o sistema penal porque no sistema penal quem tem esse poder é quem faz o filtro e o filtro inicial quem faz é a polícia. Esses são alguns dos pensamentos do juiz Rosivaldo Toscano Filho, da 2ª Vara Criminal da zona Norte de Natal.  O juiz defende uma revisão no Código Penal Brasileiro e explica porquê: “Hoje é mais brando uma  pessoa torturar outra, do que duas pessoas furtarem um televisor, porque a pena é igual, de dois a oito anos, no caso do furto ainda tem uma multa, e um caso de tortura não tem.” Nessa entrevista à TRIBUNA DO NORTE, Rosivaldo diz que o sistema judiciário é seletivo e discriminatório. Para Rosivaldo, “a seletividade do sistema começa na lei, quando a lei determina uma contradição dessa, de que é menos grave uma pessoa sonegar R$300 milhões do que subtrair um aparelho de TV, então já começa aí a seletividade”. 

Falta tanta coisa, a gente vê que  o cumprimento do regime da pena deverá ser em cela individual, com aeraçãoperfil

Onde o senhor nasceu?

Em Natal

Idade?

38 anos

Quem é Rosivaldo Toscano?

Uma pessoa que ama seu trabalho a família e a cidade de Caicó

Ator preferido

Eu gosto muito de Carl Sagan.

Tem um livro dele chamado, “O Mundo Assombrado Pelos Demônios, a ciência vista como uma vela no  escuro, que ele fala sobre nossos mitos  de discos voadores, superstição. E tem um ator brasileiro que eu gosto muito que se chama Alexandre Morais da Rosa, ele é um ator jurídico.

E na literatura?

Eu gosto muito de não ficção, eu gosto muito de Fernando Morais, do seu livro Chatô, o rei do Brasil. Tenho dois livros escritos, tenho inclusive um romance escrito.

Time?

América

COMO CIDADÃO, COMO O SR. ANALISA A SOCIEDADE BRASILEIRA?

Eu acho que cada sociedade possui a criminalidade que produz e merece. Essa não é uma frase minha, é do criminalista espanhol Antônio Garcia-Pablo de Molina.
Falamos muito em Políticas de Segurança Pública, com policiamento ostensivo, cadeias e blitzes, quando deveríamos ter mais Políticas Públicas de Segurança, que englobam saúde, educação, transporte e programas sociais. Eu acho que esse tem que ter o foco maior.
Somos um país com o grau de desigualdade muito grande, um país com toda uma história de exploração e onde não houve o chamado Estado Social. Há quinhentos anos o europeu chegou aqui se dizendo dono da verdade, dizimou populações nativas inteiras sob a alegação de que as estava pacificando e as retirando da barbárie. A gente vem sendo explorado deste então, desde Portugal, passando por Espanha, Inglaterra até os Estados Unidos. E isso não foi só no Brasil, mas em toda América Latina, que até hoje ainda é submissa aos interesses dos grandes capitais internacionais e dos países centrais de onde eles se originam. À parte a luta contra a exploração pelas nações ricas, a gente tem também que pensar que para se ter um país com menos conflituosidade temos que, internamente, diminuir a desigualdade social e regional.
Li certa vez um livro muito bom, chamado “Atlas da Desigualdade Social no Mundo”, onde consta uma pesquisa feita em 175 países, no qual em 2002, o Brasil ficou em 167º em distribuição de renda. Somos um país extremamente desigual. Então não podemos pensar que isso aqui seria uma Escandinávia, um paraíso.

O QUE FAZER PARA ACABAR COM ESSA DESIGUALDADE?

Eu acho que o país vem há alguns anos diminuindo a população que vive abaixo da linha da pobreza. Acho que tem que acentuar isso, mas um ponto muito importante é a educação, que passa também pela questão de como respeitar a sinalização do trânsito, como respeitar a fila, de não querer tirar proveito do outro. O pior é que a própria população sabe que aquele grupo pequeno que está no alto da pirâmide social vai tirar vantagem sempre que puder. O exemplo começa de cima. Roberto Damatta fala muito bem quando diz que temos aqui uma anomalia da cidadania que se expressa pela existência de três classes de pessoas. O cidadão, o subcidadão e o sobrecidadão. Cidadão é aquele indivíduo que cumpre seus deveres e exige seus direitos. Subcidadão constitui a maioria que necessita do Estado, mas só conhece dele o Estado-Polícia, que não raras vezes o oprime ou mata. Por fim, temos o sobrecidadão, uma minoria que não necessita do Estado, mas aufere dele as vantagens que, na verdade, nem necessita. É o exemplo típico aquele sujeito que é parado numa barreira policial, está sem algum documento e ao primeiro sinal de cumprimento da lei, como a apreensão do veículo, sai com a famosa frase “sabe com quem está falando?” Vira um salve-se quem puder. Isso é uma forma de violência.

EM UMA SENTENÇA QUE O SR. PROFERIU RECENTEMENTE, O SR. FAZ UMA CRÍTICA
VELADA AO MINISTÉRIO PÚBLICO. POR QUE?

Na verdade, eu não fiz uma critica ao Ministério Público, ao Promotor A ou B, ou à polícia. Foram dois casos que recebi da Central de Inquéritos do Ministério Público para despachar no mesmo dia. Inclusive narrei no blog. Um deles envolvia um pequeno amasso na grade de um portão de um posto de saúde. O outro era a investigação do homicídio de um bebê, parado há nove meses na referida Central. No primeiro, houve o oferecimento de denúncia por dano qualificado, com movimentação de toda máquina estatal já insuficiente para dar conta dessa demanda que considerei irrisória. De outro lado, estava sendo devolvido após nove meses sem solução, sob a alegação de excesso de trabalho. Absolvi de plano o réu do caso do amasso do portão e devolvi os autos do inquérito à Central de Inquéritos, manifestando minha insatisfação pela paralisação por tantos meses em um caso tão grave. Senti que a lógica estava invertida.
Vejo como uma coisa sistêmica. Quem assistiu ao Tropa de Elite entendeu. Tudo bem, há imensos exageros no filme, mas ele passa a noção de que é o sistema de controle social que tem que ser mudado em sua própria estrutura de funcionamento. Tem que haver uma virada do nosso modelo de persecução penal.
A criminalidade nunca vai terminar, faz parte da vida do homem em sociedade. A Bíblia mesmo já começa narrando um homicídio. Assim, pode apenas ser controlada, jamais extinta. De outro lado, nós temos uma alta demanda por investigações penais devido à nossa legislação criminal. No Brasil a cada novo problema que surge, surge um crime junto, e a população acha que isso vai resolver, mas não vai. A demanda fica tão grande que a polícia não consegue dar conta nem de uma parcela mínima desse rol. E termina trabalhando com casos pontuais, sejam os mais simples, que fazem volume estatístico, ou os mais rumorosos, em que há pressão da opinião pública. E com isso termina ocorrendo impunidade em casos mais complexos. Acho que primeiro nós temos que enxugar a persecução penal, a investigação.
Segundo ponto, a nossa legislação respeita mais o ter do que o ser. É mais branda pena de uma pessoa que tortura outra do que duas pessoas que furtam um televisor, porque a pena é igual, de dois a oito anos, mas no caso do furto ainda tem uma multa. Se uma pessoa arrancar um braço de outra, esse crime é menos grave do que duas pessoas subtraírem aquele mesmo televisor. Que pensar de uma legislação assim? O mais grave é percebermos isso e continuarmos agindo como se nada tivesse acontecido, atuando em casos sem importância e deixando impunes outros de maior gravidade. Outro exemplo: um empresário sonega 300 milhões de reais; dois indivíduos subtraem um aparelho de TV. Se até o recebimento da denúncia esses rapazes devolverem espontaneamente a TV, eles vão ter uma diminuição na sua pena. Se o empresário pagar o valor da sua sonegação até o recebimento da denúncia, será extinta a pena. O mais interessante é que se ele fizer um parcelamento em mil anos, como já aconteceu, o processo fica suspenso. Já se os rapazes do televisor devolverem espontaneamente após o recebimento da denúncia, serão condenados ainda assim, podendo apenas juiz atenuar a pena.
Outro exemplo é o crime de lesão corporal leve. Você sofre uma surra de outra pessoa, e ainda tem que ir à Justiça dizer que quer a punição do agressor. Enquanto isso, num caso de furto, mesmo que você já tenha seu bem de volta e se dê por satisfeito, terá novo aborrecimento de ser obrigado a ir a uma audiência na Justiça e relembrar tudo aquilo. Isso é constrangê-lo, revitimá-lo.

O SISTEMA PENAL É SELETIVO?
O sistema penal é seletivo e discriminatório em três momentos. O primeiro começa na lei, como já exemplifiquei no caso do sonegador e dos ladrões. Num segundo momento, a gente tem uma falsa idéia de que toda pessoa que comete um crime é punida. Mas a prática mostra que somente as pessoas dos estratos mais baixos da sociedade são atingidas pelo sistema penal. Se cada um de nós realizar um exame de consciência e fizer seu histórico de atos impensados, verá que tem seu prontuário de pequenas infrações: aquele dia em que bebeu demais e dirigiu, por exemplo. É interessante quando eu dou uma palestra sobre isso, eu pergunto, “quem aqui já bebeu e dirigiu?”

NINGUÉM ATIROU A PRIMEIRA PEDRA?

Ouço risos constrangidos das platéias, após uns doze exemplos de infrações mais comuns, desde embriaguez ao volante, passando por sonegação fiscal quando se dispensa nota fiscal para aumentar o desconto ou a receptação quando se compra uma bolsa ou um relógio falsificado, que eufemisticamente chamam de réplica. Existe o mito do legislador racional. Pensamos que há um estudo. Mas pode ter certeza de que 90% dos tipos penais e das penas a eles atribuídas são originários muito mais de pressão social do que de um estudo sério de política criminal. E terminamos criando a política do encarceramento. Hoje temos a terceira população carcerária do mundo! Aí surge a seletividade terciária. Aquele contingente de pessoas amontoadas em um ambiente fétido e degradante.
Sintomático é o modo como lidamos com os dependentes químicos que furtam ou roubam para manter o vício. Não é racional simplesmente prender o indivíduo que precisa muito mais de um tratamento do que de uma cela, e a gente não pensa, põe na cadeia e não resolve o problema. Vai sair, continuar dependente e subtraindo. Não sabe o que fazer? Cela nele!
Banalizar o encarceramento é deteriorar o ser humano. E se o indivíduo sair pior do que entrou a própria sociedade sofrerá as consequências. É um ciclo vicioso custoso, desumano e inútil. Estou aplicando a lei de drogas aos crimes contra o patrimônio e determinando que o condenado não só cumpra uma pena, mas, principalmente, passe também por um tratamento contra a dependência química. Temos que combater a causa.
O encarceramento prolongado tem que ser aplicado em situações extremas, como exceção. No mais das vezes, deve servir como um resguardo nas infrações menos graves.

É COMO UM CARTÃO AMARELO?

Exato. Agora o que acontece é que a nossa legislação e a população em geral têm a idéia de que somente em se colocando alguém na cadeia a gente o corrige.

O SENHOR ACHA QUE A SAÍDA SERIA A EXECUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
CONSISTENTES?

Mais Políticas Públicas de Segurança, menos Políticas de Segurança Pública. O neoliberalismo apregoa um Estado mínimo. E sem políticas inclusivas as camadas desfavorecidas sofrem o desemprego e o alheamento do Estado. Assim, qual a solução? Para o vazio do Estado Social, o Estado Polícia. O problema das drogas ilícitas, por exemplo, é um desafio grande. Certa vez li um psicanalista falando que deveríamos nos perguntar se as drogas são uma causa ou uma conseqüência de problemas sociais. Não seria uma fuga da dura realidade? Para mim é, antes de tudo, um problema de saúde pública. Tratar só com polícia e cadeia não resolverá. Um exemplo claro do paradigma errado do “combate ao tráfico” bem ao estilo militarizado ocorreu no México. A política de “guerra” contra o tráfico está sendo um desastre. Guerra tem soldados, tem tiros, tem vítimas colaterais, civis inocentes mortos. Guerra é guerra. Não tem limites. Vinte se sete mil pessoas, a população de uma cidade como Pau dos Ferros, foram mortas em homicídios e chacinas envolvendo tráfico no México, em apenas três anos. Chegou-se a uma situação sem controle, beirando uma guerra civil. Além de repensar a criminalização, como o ex-presidente Fernando Henrique mesmo vem defendendo, é preciso usar muito mais a inteligência e muito menos as armas nessa estratégia. Não adianta prender as tainhas e deixar os tubarões a solta. Não vai faltar tainha para tomar o lugar das que ficaram na rede.

O QUE O SENHOR ACHA DA POLÍTICA DE TOLERÂNCIA ZERO COMO FOI ADOTADA EM NOVA IORQUE?

A política de tolerância zero aplicada a nossa realidade só reforça o que eu já falei, porque ela visa atingir penalmente os pequenos infratores. Então aqui o que se faria seria o seguinte: vamos pensar só em pequenas infrações, as grandes, não. Estimularíamos ainda mais a impunidade nos casos mais graves, pois a estrutura de controle social seria insuficiente até mesmo para cobrir as pequenas infrações. A política de tolerância zero, inclusive, foi abolida nos Estados Unidos. Ela serve aqui de propaganda que seduz os desavisados ou a quem quer efetivamente deslocar a discussão das reais causas.

POR QUE A SOCIEDADE É PACIENTE COM OS CRIMES DO COLARINHO BRANCO?

Pois é, para o senso comum o político que comete uma malversação pública, que desvia milhões de reais, não é um bandido, entendeu? Bandido é mestiço, pobre, tem tatuagens, se droga e nem educação tem. A gente tem uma visão muito moralista e estereotipada. A gente tem que ver que os grandes crimes não são cometidos com revólver e sim com uma caneta. A tinta é uma arma muito mais poderosa do que uma bala. Ao mesmo tempo esse tipo de crime é de difícil mobilização social, ou porque seus agentes são muito próximos do Poder e conseguem amenizar a divulgação dos fatos nos veículos de comunicação, ou porque há complexidade até mesmo em entender como se deu o iter criminis ou porque nem sempre seus efeitos econômicos são palatáveis às massas. Quando um político corrupto desvia 20 milhões de reais, dinheiro que dá para construir um hospital, ele não está desviando do bolso de ninguém diretamente. Mas o cidadão comum só sente quando um camarada furta uma camisa do seu varal, embora que indiretamente o prejuízo possa ser menor. Não é à toa que aqui o Erário Público é simbolicamente chamado de Viúva.

GRANDES EMPRESÁRIOS SUBTRAEM O FGTS DOS TRABALHADORES, SÃO DENUNCIADOS, MAS A SOCIEDADE PASSA A MÃO NA CABEÇA DELES. POR QUE ESSA INDULGÊNCIA DA SOCIEDADE?

Os meios de comunicação, que procuram mostrar a violência banalizada: o grotesco, o brutal, chama atenção, pois vai ao que é mais primitivo no ser humano. A psicanálise e a psicologia social explicam isso muito bem. No momento em que o indivíduo está assistindo àquele fato grotesco na televisão, inconscientemente sente também o alívio por ver que não foi a vítima da vez. O homem primitivo era caçador e às vezes caça também. Então isso chama muito nossa atenção, pois atinge o que há de mais profundo em nossa estrutura psíquica que é o instinto de sobrevivência. O grotesco, assim, vende.
Um Estado como o Brasil precisa de políticas públicas pesadas durante muitos anos para poder diminuir essa desigualdade. E isso não se faz somente com boas intenções. Exige recursos. O Brasil precisa ter um orçamento que permita realmente executá-las, e para que ele atinja tal volume a gente tem que diminuir a sonegação de impostos e os desvios dos recursos públicos.
Os meios de comunicação dependem economicamente dos seus anunciantes e por isso terminam representando os interesses dos grandes grupos econômicos. O discurso que assumem é o neoliberal de sempre, resumido na desoneração tributária. Não tem a tão propalada isenção na hora de publicar algo contra um grande anunciante, por exemplo.

A PRÓPRIA IMPRENSA NÃO ESTÁ DENUNCIANDO CADA VEZ MAIS?

Sim, hoje em dia a imprensa não é assim omissa. Mas também nem dá mais para ser. Ela hoje sofre uma forte concorrência da internet e dos meios informais de comunicação dela derivados. A transparência está aumentando. Olha o wikileaks. É um exemplo. Espero que seja uma boa oportunidade de fazermos uma catarse coletiva com base no que está sendo divulgado e abrimos o olho para a exploração que sofremos externamente e a que praticamos aqui com os extratos mais carentes da população. O que eu falo é que a imprensa também se importa com o que vende. O grotesco vende, a gente não pode negar isso.

A VIOLÊNCIA NÃO ESTÁ BANALIZADA?

A gente tem que entender o que é violência: é todo ato que atenta contra a dignidade do ser humano. A fome, a falta de perspectiva é violência, você não ter condição nenhuma de ser educado é violência. Precisamos ter essa visão. Já melhorou muito, mas a gente ainda necessita de pelo menos uma década e meia de avanços. E o combate à violência tem que ser em todos os sentidos. Da violência do Estado contra o indivíduo e/ou vice-versa, a gente tem que ter os dois caminhos. Agora só para completar, os meios de comunicação transmitem a gente mais insegurança. O medo se tornou quase uma paranóia. Hoje em dia acontece um caso num local distante, mas tomamos como realidade nossa. Uma vez perguntei numa palestra que eu dei na FARN, com duzentas pessoas presentes, quantas foram assaltadas nos últimos dois anos. Apenas duas pessoas tinha sido. Mas a sensação que as pessoas têm é outra. Você hoje está vendo o caso de Elisa Samúdio, ex-namorada do goleiro Bruno; veja o exemplo do caso dos Nardoni. Eu vi na televisão um cara com uma faixa, “Isabella eu te amo”, e o repórter perguntou: “- o senhor a conhecia? – não.” Mas ele atravessou a cidade para estar lá.

O SENHOR ACHA QUE A IMPRENSA TEM PODER DE INFLUENCIAR O JÚRI POPULAR?

Em algumas situações têm. Não é à toa que se chama o Quarto Poder. É um poder de fato.

JÁ OCORREU?

Comigo nunca ocorreu, mas a idéia que me passa, no caso dos Nardoni, é que dificilmente iriam ser absolvidos, independentemente das provas. O jurado, sem perceber, termina formando um prejulgamento em razão do bombardeio de notícias desfavoráveis aos acusados. A sensação que tive foi de que já foram ao júri fadados à condenação. A população vê tanta injustiça no seu dia-a-dia, mas dessa vez a justiça vai existir, e a população terá o gozo, naquele momento, como se ela quisesse se vingar. Tanta coisa ali foi deslocada, é o termo psicanalítico, para os Nardoni que eu acho que dificilmente eles teriam enfrentado um júri verdadeiramente isento.

A PENA NO BRASIL É DADA PENSANDO NA RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO?

A questão aí reside em decidirmos se o que importa é o discurso ou a prática. O discurso é de ressocialização, claro. Bonito. A prática, porém, é de mera exclusão e degeneração, prejudicando a própria sociedade. Não tem cabimento sustentarmos um discurso quando vemos uma total disparidade com a prática. Se continuarmos a colocar gente na cadeia da forma que estamos fazendo, daqui a pouco não vai ter mais dinheiro para nada. Só para prisão. Lembre-se: um preso custa em média R$ 1.600,00 por mês.

A PRISÃO É A ÚNICA SAÍDA PARA A REPARAÇÃO DE UM CRIME?

Em algumas situações sim. Mas se você comprar numa loja e não pagar, o dono coloca você no Serasa e isso tem alta eficácia. Como já tinha dito sobre as penas alternativas, eu acho que em muitas situações há outros meios. Como no caso do amasso do portão do posto de saúde e que deu origem a essa reportagem, deveria ser permitido ao juiz determinar que o camarada tivesse seu nome inscrito num cadastro de proteção ao crédito até reparar o dano, pois o acusado era um indivíduo inserido no mercado de consumo.

A POLÍCIA INVESTIGA?
A polícia tem um limite de investigação, mas a demanda que chega para ela é tanta que não consegue dar conta. Fica só nisso. Nesse caso específico do dano houve laudo do ITEP, após vistoria no local por dois peritos. Bateram e revelaram várias fotos.
Cabe ainda destacar a falta de investimentos nos órgão de medicina legal. Eles não têm aparelhamento para perícias um pouco mais complexas, exatamente as que são exigidas em crimes de maior vulto. Vejo também que noventa por cento dos inquéritos que me chegam são de casos de flagrante delito. Não existe estrutura para investigar. Ou o indivíduo é preso no ato ou não se chega a um bom termo.

SÓ QUE O ESTADO…

Pois é… Pelo menos precisamos fazer um mutirão com o que existe hoje, fazer uma limpeza, uma faxina na casa. Só assim conseguiremos trabalhar bem daqui pra frente. Não dá para continuarmos com a realidade de hoje. Esta semana peguei a investigação de um roubo ocorrido em 1998. Já não se acha mais ninguém.
Minha impressão é de que não existe uma estratégia de atuação por parte dos Órgãos de persecução penal. Pergunto-me se o Ministério Público concorda que não há condições de atuar de maneira organizada com o acervo que existe hoje. Insistir num inquérito que fatalmente não dará em nada é desperdiçar energia em vão. Entra-se novamente no redemoinho. Quando mais tempo demorar, mais difícil a investigação. Testemunhas esquecem, outras mudam de endereço, outras morrem. Policiais se aposentam, provas se perdem. Quando chegam ao Judiciário ou dá absolvição por falta de provas ou ficam suspensos aguardando a captura acidental do acusado. Um trabalho de Sísifo. Não posso culpar o Ministério Público ou a polícia, pois não conheço de perto as dificuldades deles. Faço apenas uma constatação.
Quem sabe após uma faxina no acervo, seguida de uma análise das fortalezas e oportunidades, fraquezas e ameaças dos órgãos de investigação, e o estabelecimento de metas a médio e longo prazo, tal problema não se resolvesse. Mas nada disso se mantém a longo prazo sem pessoal e recursos financeiros…

O SENHOR AFIRMA QUE A POLÍCIA É QUEM TEM MAIS PODER NO SISTEMA PENAL?

É sim, porque quem faz a filtragem é a polícia. Na prática, só chega ao Judiciário e ao Ministério Público o que passar pela polícia. Uma investigação deficiente põe a perder uma pretensa ação penal. Por isso é tão importante dar poder investigatório ao Ministério Público. Quanto menos autonomia tiver nesse diapasão, pior para a sociedade.

MAS O MINISTÉRIO PÚBLICO PODE ATUAR DE OFÍCIO?

Pode atuar de ofício, mas o Ministério Público não é onipresente. Não dá expediente na delegacia.

E ISSO É UMA FALHA?

Não é uma falha, é a própria forma de ser do sistema.

E O SISTEMA É FALHO?

O sistema penal é falho sim. Ou talvez seja do seu interesse que assim funcione. Tudo tem uma razão de ser, não é mesmo?

O PODER QUE A POLÍCIA TEM NA INVESTIGAÇÃO É MUITO GRANDE?

Dentro do sistema penal a polícia termina tendo um poder maior. Ela quem pode fazer atividade inicial. É por isso que eu acho que o Ministério Público tem que ter mais espaço. Eu defendo o poder investigativo do Ministério Público e que a polícia seja submetida ao Ministério Público, como é nos Estados Unidos e na maioria dos países do mundo. Aqui inventaram essa coisa chamada de inquérito policial.

MAS HÁ UMA REAÇÃO À PRESENÇA DO MP NA INVESTIGAÇÃO

Se há, quais seriam as razões para que a polícia não quisesse o Ministério Público investigando? Talvez a questão de que toda mudança é desagradável. A situação já esta acomodada. Talvez isso, o receio que não se tenha tanta liberdade de atualização, haja uma desvalorização da carreira, mas acho que não se deve ir por aí.

O QUE FALTA PARA QUE A LEI DAS EXECUÇÕES PENAIS SEJA EFETIVAMENTE
CUMPRIDA?

Falta tanta coisa. A gente vê que o cumprimento do regime da pena deverá ser em cela individual, com ventilação. Parece brincadeira ler isso na lei e ir ver a realidade.

SR. AINDA ERA ESTUDANTE DE DIREITO QUANDO VISITOU A JOÃO CHAVES. COMO FOI ISSO?

Sim. O professor falou: vamos ter uma aula de campo, fazer uma visita a João Chaves. O policial falava: “aqui era uma biblioteca, agora virou uma cela”; “essa cela era o local do culto, mas a igreja daqui agora é no refeitório”; “essa cela era aqui era para visita íntima”; “nessa cela ficava a biblioteca”. Tudo virou cela. Aí eu pensei: “o sujeito que entrar aqui tem que sair pior”. Não precisamos mudar as leis nesse aspecto. Basta cumpri-las e escolher bem quem vai pra lá.

EXISTEM NÚMEROS MOSTRANDO UMA MELHORA NOS SERVIÇOS PRESTADOS PELA
JUSTIÇA?

Existem. Veja bem, acho que a gente teve uma melhoria. A questão é saber a que preço. Não pode ser a custa da independência do juiz. Ele precisa ter liberdade para decidir, mesmo contrariamente a súmulas de tribunais superiores, senão transformamos o juiz em autômato e a Justiça em algo pasteurizado. Não se pode fazer justiça no atacado, principalmente na esfera penal, onde cada caso tem um colorido próprio. De outro tanto, uma visão de boa gestão pública, envolvendo planejamento estratégico, é amplamente favorável a toda sociedade. Espero que essa visão, de gerir bem se alastre pelo outros poderes. Soube que o Tribunal de Constas também está no mesmo caminho. Eu não tenho muitas informações sobre como estão os outros Poderes. Mas se usarem ferramentas de gestão pública como as que hoje a Justiça está usando, terão melhorias a médio prazo, pelo menos. Temos que levar em conta que se trata de instituições seculares e que as mudanças são paulatinas. O importante é caminhar.

O SISTEMA TRABALHA COM NÚMEROS CONFIÁVEIS?

Refere-se ao sistema penal? O sistema nesse sentido não é humano. A gente está vendo que não funciona de maneira a respeitar os Direitos Fundamentais. Tinha uma estagiária que só falava em tolerância zero. Levei-a a uma visita, juntamente com outro estagiário, a uma delegacia de polícia na Zona Norte. Ao sair ela ficou tão assombrada que me questionou se aquele tipo de prisão não caracterizaria crime de tortura.

TODOS SÃO REALMENTE IGUAIS PERANTE A LEI?

Essa é uma falácia. Agora, quanto maior o índice de desigualdade, mais degenerativo é o sistema penal, porque o sistema é seletivo, embora tenha o discurso de que todos são iguais perante a lei. Eu tenho dez anos de magistrado, e estou lembrado de um ou dois casos de pessoas que tinham uma renda elevada e sentaram no banco dos réus. Não dá para dizer que não é discriminatório.
Olha, em 2006 eu era juiz em Mossoró, quando respondi pela Vara de Execução Penal durante três meses. Fui ao presídio Mário Negócio levando uma folha de reclamações em branco para cada um dos duzentos presos. Quando entreguei na primeira cela, um preso falou: “doutor, ninguém sabe escrever aqui”. E nessa brincadeira, dos duzentos presos só cinco sabiam escrever. Essa é uma constatação de como o sistema é injusto. Tive um caso marcante: um rapaz era travesti, estava sendo acusado de ter participado de um roubo, tinha sequelas de uso de silicone industrial, que o deformou e, segundo ele, foi espancado. Teve um AVC em razão disso. Reclamou de racismo. Ainda por cima era soropositivo HIV, mal sabia assinar o nome, e era pobre de Jó. Então quando ele entrou aqui, arrastando-se com um lado do corpo paralisado, foi penoso assistir à cena. Nas alegações finais o defensor público falou: “na escala dos excluídos, ele é um ícone”. Eu pensei na situação dele na cadeia. A própria vida já o puniu demais. Condenei-o, mas não apliquei pena, pois não havia necessidade.

A LENTIDÃO COM QUE A JUSTIÇA PUNE NÃO CONTRIBUI PARA DIFICULTAR A
RESOCIALIZAÇÃO DOS PRESOS?

As pesquisas mostram que mais importante que uma pena elevada é a celeridade na punição. A gente peca em situações nas quais o camarada cometeu infração há não sei quantos anos, pois a lei permite que a pessoa seja punida vinte anos depois. Imagine punir um sujeito vinte anos depois. A gente vai punir outra pessoa, não é mais aquela não.
Vocês vieram por onde? Pela ponte nova? Vocês observaram que tem uma lombada eletrônica na ponte nova? Do lado de lá, 50 km, viu? Depois que colocaram, quantas vezes você passaria acima de 50, sabendo que seria multado? Você sabe quanto é a multa? Uns noventa reais. Se eu falar para você que a multa é de trinta, você passaria sem alguma necessidade? Não passaria, nem por R$ 1. O ser humano é assim. A Inglaterra é um país de um povo muito educado, ninguém coloca nada no chão, agora Londres tem quinze mil câmaras, tudo é filmado e ninguém escapa de ser punido. E não precisa por na cadeia. A pena é pecuniária e fica registrada no CPF, por assim dizer, do sujeito. Ninguém arrisca uma punição certa, por menor que seja.

A IMPUNIDADE GERA ISSO?

Mais importante do que o tamanho das penas é a certeza da punição. Então, o que se deve fazer é enxugar os tipos penais, tirar muitos desses crimes, passá-los para a esfera civil para, isso sim, a polícia ter condições de abordar e investigar as situações mais graves sem demora e com profundidade, o Ministério Público de denunciar rapidamente e o Judiciário de julgar também com celeridade. E dar prioridade ao combate da criminalidade em larga escala, tanto a de arma quanto a de caneta.

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