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Educação contra prostituição

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Ana Felizardo:

Como é o seu projeto de denúncia e proteção de crianças e adolescentes contra a exploração sexual?
Ana Paula Felizardo: A Casa Renascer foi fundada em 91 para atuar na defesa dos direitos de meninas, crianças e adolescentes, em situação de risco pessoal e social em Natal, principalmente aquelas exploradas sexualmente. Nossa primeira atividade foi realizar visitas às casas de prostituição e abordagens junto às meninas que se prostituíam nas ruas, as primeiras garotas que atendemos foram desses dois meios. Com o tempo percebemos a importância da prevenção para impedir que as garotas chegassem a se prostituir. Nessa época também veiculamos um dossiê que acabou subsidiando a CPI da Prostituição Infantil em Brasília. Esse período foi muito difícil, as denúncias mexeram com interesses locais muito fortes, sofreremos tantas ameaças que a Polícia Federal teve que garantir nossa segurança. Lamentavelmente, as investigações não se aprofundaram e ninguém foi preso. Num segundo momento passamos a atuar mais com a proposição de políticas públicas e pesquisas. Também organizamos a “Campanha Nacional pelo Fim da Exploração Sexual Infanto-Juvenil”, da qual participei como Secretária Executiva. A campanha durou quatro anos e despertou outros atores, foram mais de mil adesões, para um problema muito restrito às organizações especializadas. Com isso acabamos conseguindo a constituição de Comissões de Direito da Criança por todo o Brasil.

Em 96, estivemos no 1º Congresso Mundial Contra Exploração Sexual Comercial de Crianças, realizado em Estocolmo (Suécia), que, entre suas recomendações, propôs que os países criassem planos de ação contra a violência sexual. Depois disso a Casa Renascer integrou a comissão nacional – juntamente com o Cetria, Ministério de Justiça e outras entidades – que desenvolveu o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Fizemos a Secretaria Executiva de toda a proposta. Esse plano é dividido em 6 eixos estratégicos: fortalecimento do protagonismo juvenil; mobilização social; defesa e responsabilização; atendimento às vitimas; e prevenção. A luta agora é estimular a criação de planos estaduais e municipais, para isso foi constituído um Comitê de Monitoramento. Além disso lançamos a Campanha “O Turismo Sexual Infanto-Juvenil Não Pode Ser Maquiado” que pretende sensibilizar as pessoas para o problema do turismo sexual.

Você acha que a indústria do turismo incentiva conscientemente o turismo sexual?
APF:  Não, percebemos que o empresário pode até ser contra, mas o turista chega aos aeroportos e encontra mulheres e adolescentes já na porta, toma um táxi e o taxista oferece, o mesmo na recepção do hotel… Por isso temos um trabalho educativo no sentido de explicar às pessoas que essa situação é crime, que crianças e adolescentes não se prostituem porque querem e que precisam ser protegidas. Nossa proposta é estimular o consumo ético de serviços, boicotando hotéis que estimulem tais práticas, não basta apenas a indústria turística parar de tolerar a prostituição infanto-juvenil, o cidadão comum também precisa colaborar.

As campanhas que vocês promovem conseguem alcançar grande adesão popular?
APF: Este é um tema que realmente mobiliza as pessoas, principalmente por causa do envolvimento da mídia, com a qual temos um relacionamento muito bom pelo nossa atuação como núcleo de pesquisas, acabamos referendando muitas reportagens. Mas do envolvimento de uma carta ou um telefonema de apoio para participação pró-ativa da população vai tempo. A Casa é um laboratório que reúne as histórias das meninas e metodologia de pesquisa, o que nos permite entender como fazer uma intervenção mais qualificada, saber como o fenômeno se processa, suas causas e efeitos. Acho que a criação do núcleo foi uma iniciativa pioneira, um verdadeiro avanço.

Como essas garotas acabam na prostituição, como elas são aliciadas?
APF: Lamentavelmente não existe uma máfia que controle o processo, nosso desafio, portanto, é produzir conhecimentos a esse respeito. Estamos atualmente delineando um projeto de pesquisa sobre essa realidade, o que é um grande desafio devido ao fato das meninas não precisam mais se concentrar nas praias ou no centro a fim de atrair clientes, por causa dos celulares tudo acontece nas próprias comunidades de origem. Ficou muito difícil descobrir os agenciadores porque eles não atuam mais através dos prostíbulos.

Também não adianta cair no velho discurso da pobreza para explicar essa situação porque seria redundante. Precisamos lançar um olhar sistêmico sobre essa questão, se a culpa fosse só da pobreza não haveria universitárias fazendo programa. Existe uma série de questões subjetivas como as relações das meninas com suas famílias, em especial com a figura paterna, ou o enorme fascínio da noite, dos produtos de consumo e dos ambientes aos quais elas não teriam acesso de outra forma, tudo isso conta bastante.

Nós temos um caso muito ilustrativo de três adolescentes que a gente acompanha desde a época em que visitávamos prostíbulos. A mãe delas era prostituta e essas crianças moravam com ela num cabaré, então elas tiveram uma infância totalmente deturpada vendo a mãe fazendo programas, dormindo de baixo de camas onde aconteciam os programas, enfim… Uma delas não conseguiu se inserir em nossa proposta e acabou entrando na prostituição. Essa menina está na Suécia junto com uma pessoa com quem ela tem uma relação, que começou como exploração e hoje é um namoro aceito por toda a família. A mãe delas – que abandonou a prostituição – acha ele o máximo! Enquanto isso uma das outras irmãs já tem um filho, trabalha e está estudando para o vestibular. Ambas foram criadas no mesmo espaço e tiveram as mesmas oportunidades.

Como você vê a postura dos governos em relação a esses problemas?
APF: As políticas deveriam passar mais pelos conselhos, mas nós temos uma sociedade civil que ainda não está fortalecida o suficiente para utilizar os conselhos como espaço propositivo, de forma geral sinto que ainda há uma timidez na hora de fazer pressão política, os conselhos seriam os espaços onde o estado poderia ser mais pressionado. Em alguns estados existem boas intenções, porém péssimos assessoramentos.

Como vocês financiam suas atividades?
APF: É uma luta. Prestamos atendimento para cerca de 50 meninas de segunda à sexta. São três refeições diárias, vale-transporte, as aulas… e isso significa um gasto grande. Temos parcerias com o Instituto C&A, com WCF e mais duas instituições austríacas, mas, em geral, os financiamentos são para projetos bastante específicos, o que nos obriga a viver mandando projetos de lá para cá e correr para renovar acordos, ainda assim temos conseguindo apoios importantes. Foi o caso dos computadores para o nosso tele-centro, financiados da Embaixada da Alemanha e pela ONU como parte de um projeto de inclusão digital. Apesar de toda a dificuldade já existimos há 11 anos. Isso nos dá alguma credibilidade junto aos financiadores e nos permitiu algumas conquistas como a sede que temos hoje para abrigar nossas atividades e a Fábrica Escola, que funciona num prédio próximo a nossa sede, onde oferecemos cursos principalmente para as famílias das garotas. Esses são espaços muito legais, mas já enfrentamos problemas sérios por falta de um espaço apropriado.

Vocês também desenvolvem trabalho com as famílias das meninas?
APF: A Fábrica Escola atua como um espaço de especialização profissional em tecelagem e é aberta a toda a comunidade, natural que muitas das famílias das meninas atendidas acabem freqüentando os cursos. Esse é o maior objetivo da Fabrica porque nós percebemos que atendendo apenas as meninas deixávamos algumas lacunas. Além disso, a Fábrica Escola iniciou uma parceria com a Ceduc – uma unidade sócio-educativa para meninos infratores semelhante a Febem de São Paulo – para o oferecimento de um curso de tecelagem de redes para os internos. Os resultados têm sido fabulosos, tivemos o caso de um menino que chegou a pedir para ficar mais tempo na Ceduc para poder terminar o curso. Isso tem um impacto direto na imagem de irrecuperabilidade desses meninos, pois mostra que eles podem fazer algo produtivo, algo de bonito.

Como é que acontece a seleção das meninas para os programas da Casa?
APF: Das mais diversas formas! Geralmente elas são encaminhadas por órgãos públicos, mas há casos de mães, amigas e até vizinhas que nos procuram. Primeiro as meninas passam pelo nosso serviço social, que aplica a chamada Grade de Vulnerabilidade para verificar se a menina está ou não dentro de nosso perfil. Não estamos equipados para atender casos graves de dependência de drogas, por exemplo, então estes são encaminhamos para outras instituições.

Depois disso, elas são apresentadas às atividades que oferecemos e entram numa rotina semanal, chegam às oito horas da manhã, tomam café e vão para as atividades. Segundas e quartas são dias de arte e cultura, com aulas de dança, canto e teatro; nas terças e quintas temos complementação escolar; nas sextas a gente intercala a assembléia das meninas, onde elas avaliam a atuação da Casa, e oficinas sobre sexualidade, direitos reprodutivos e gênero.

O caso da complementação escolar é interessante, pois o ensino oficial realmente não basta. Temos meninas que chegam à quinta série sem saber ler direito, então complementamos a educação delas através da “metodologia dos projetos”, elas aprendem fazendo pequenos projetos práticos. Num deles, as garotas fazem um mapeamento da própria comunidade onde moram e depois sistematizam as informações, o que serve para faze-las lançar um novo olhar sobre essa região. Outros momentos são dedicados a gincanas de conhecimento, visitas ao patrimônio histórico e visitas a escolas, onde elas podem observar a metodologia de ensino aplicada. Muitas vezes acabamos constatando que os problemas de aprendizados nem estão nas meninas, mas na relação entre elas e os professores.

Também temos preocupação com a saúde, providenciamos para todas uma carteirinha do Hospital Universitário, que é nosso vizinho, para onde são encaminhadas sempre que preciso. Se for um caso específico também recorremos à alguns programas de voluntariado, como o Doutor Voluntário, mas nossa postura é de não retirar do Estado as obrigações que este tem.

E como são essas oficinas de sexualidade para as meninas?
APF: Nas oficinas nós discutimos questões como maternidade, namoro, conflitos de geração e de gênero, sexualidade, doenças sexualmente transmissíveis, etc. A gravidez precoce continua sendo um dos problemas mais sérios, porque os adolescentes se sentem invulneráveis, eles sempre pensam “não vai acontecer comigo”. Outro dado importante, mas menos conhecido, para explicar essa realidade é o fato das mães dessas meninas precisarem trabalhar, são as garotas que cuidam dos irmãos menores e, assim, perdem o medo ante a perspectiva de criar uma criança, como acontece com muitas mulheres de classes mais ricas. As oficinas são ministradas pela Magda, que é professora e está fazendo doutorado em Pernambuco, além de participar de outras duas entidades que trabalham com essas questões. Nosso esforço maior sempre foi o de especializar nossa equipe, trabalhar sempre com profissionais de ponta. Um resultado disso é o “As Marias”, o grupo de teatro formado dentro da Casa. Essas meninas estão montando um espetáculo, o “Matheus e Matheusa”, toda a montagem e a pesquisa que reuniu os textos de Castro Alves, Martins Pena e Qorpo-Santo que serão usados no espetáculo foram elas quem fizeram. Atualmente estamos pleiteando junto ao Instituto C&A um novo patrocínio para a realização de uma temporada em teatro e mais uma bolsa para as participantes do grupo. É muito importante para as famílias ver aquilo que elas fazem ser valorizado, porque quando a sobrevivência vem a arte não é nada. Para não ganhar nada, é melhor elas trabalharem como domésticas do que fazendo teatro.

Quais são os novos desafios para a Casa?
APF:Com relação a Casa, queremos transformar nossa unidade em um centro de defesa, esse salto requer um atendimento mais focado nas vítimas de abuso. Nossa equipe está muito motivada, fizemos um planejamento sistêmico muito interessante que nos permite enxergar o sistema Casa com todos os fatores de influência e os impactos que realizamos. Está muito claro para nossa equipe esse processo de mudança.

Outra coisa na qual temos pensado muito, é nas formas de consolidar uma versão local do Plano Nacional. Há também algumas possibilidades de internacionalizarmos nosso trabalho, facilitando projetos semelhantes em países da África e em Cuba. O Brasil tem muito a contribuir com a criação dos códigos de conduta nacionais.

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