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Encontros da vida

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN
Madrugada. A cidade dorme. Abro a janela do meu mundo e contemplo minhas raízes sentimentais. Ingressei anos atrás na chamada terceira idade. Transpus há quase catorze anos o “rubicão” dos sessenta anos. O silencio da cidade é cúmplice na tentativa de reencontrar afeições, sonhos, esperanças, alegrias, tristezas e motivações do seu universo humano. A cidade submetida, desde minha infância, a fantástica, inesperada e imprevisível transformação. Metamorfose igual ao desabrochar de uma rosa. As pétalas se abriram e revelam outro ser. Semelhante também à transfiguração de uma moça. Ontem menina, amanhã mulher. Inquieta-me a dúvida sobre a maneira de ser dos seus habitantes. Tempo entre minha infância e, agora, esse “novo mundo”. Não sei avaliar, ainda, os desdobramentos dessa globalização na gente da minha cidade.

As ventanias, bruscas e fortes, sobretudo na imensidão da noite, rompem a calmaria do sono da cidade. Os morros que a adornam parecem declamar, aos primeiros clarões da aurora, a poesia da natureza. Ostentam sua indumentária verdejante e albergam pássaros, que cantam sua renovada saudação ao novo dia. É uma espécie de sinfonia pastoral, que, infelizmente, é despercebida pela maioria da população. Mas, ainda hoje, desperto para assistir esse florescer do dia, aspergindo o esplendor da vida  em todos nós. Os pássaros daqui gorjeiam expansivamente. Evocam o canto melodioso das cotovias, que encantavam e inebriavam Romeu e Julieta. Somente o gênio de William Shakespeare foi capaz de sentir e expressar esses momentos eternos.

Há conceitos sedimentados séculos e séculos atrás. Alguns emergiram da aurora dos tempos. Homero, na Ilíada e na Odisséia, decantou o espírito libertário de povos que habitavam margens de mares e oceanos. Seu mais notável personagem, Ulisses, possuía os atributos da coragem e da ousadia ante o desconhecido. Provinha de uma ilha: Ítaca. A provinciana Natal dos anos 20, 30, 40 e 50, cenário das emulações e confrontos entre xarruas (moradores da Cidade Alta) e canguleiros (habitantes da Ribeira e das Rocas), está consagrada nas “Actas Diurnas” de Cascudo. Essas crônicas enaltecem hábitos, costumes e sonhos de uma cidade voltada para o mar. Cidade livre, aberta, imbuída de um espírito talássico, como sempre dizia e repetia o saudoso Odilon Ribeiro Coutinho. Espírito e circunstâncias genialmente revelados por Newton Navarro.

Somos universais. Temos sonhos estendidos e debruçados sobre o mundo. Sentimos, sofremos ou desfrutamos suas alegrias e tristezas. O amor à mulher amada, à terra e aos seus encantamentos. Eis o tema exclusivo dos nossos poetas. Reporto-me ao meu tio-avô Gotardo Neto, cujos poemas suspiraram a amargura do amor perdido, a desilusão da paixão desfeita, a perda, mas não o esquecimento, da musa de sua vida e dos seus sonhos. As cartas de Heloísa eternizaram seu amor por Abelardo. As de Gotardo projetam os mesmos sentimentos no infinito. A poesia de Ferreira Itajubá e Otoniel Menezes é universal. É lírica e é épica. Seus sentimentos e sua versatilidade assim se demarcam: Laura e Petrarca, Beatriz e Dante, Julieta e Romeu, assumiram nesses poetas versões locais dos seus dramas e tragédias. Através da poesia os dois sublimaram aquela maneira de ser proclamada por Cascudo em  sua obra.

Há um contraponto afetivo e nostálgico. Subitamente me sinto arrebatado e reconduzido ao passado. Natal dos anos 40 e 50. Cidade da minha infância. A Avenida Rio Branco, centro e coração da cidade, era um largo e extenso corredor, onde se alternavam, predominantemente, casas em estilo “belle époque” e as grandes lojas da cidade. Suas amplas calçadas eram assombreadas por abundantes “ficus de bejamim”.  Suas cercanias, ainda hoje incluem o “Grande Ponto”, as avenidas João Pessoa e Ulisses Caldas, as Praças João Maria, Sete de Setembro e André de Albuquerque, formando, naquele tempo, um conjunto harmonioso, bucólico e saudosista. Subsistia um clímax evocativo do pós-guerra. As pessoas viviam descontraidamente. A placidez do cotidiano era contagiante. Laços provincianos coexistiam com as inovações trazidas pela Guerra nos hábitos e costumes. Germinava latente, desde os tempos gloriosos e aventurescos da aviação, uma vocação cosmopolita.

 Bares, restaurantes, casas de lanche e sorveterias, confeitarias, o célebre “Natal Clube”, os cinemas Rex e Rio Grande, a Praça Pio X (que não mais existe), ainda exibem, em minha memória, as marcas de uma época em que o regional incorporava espontaneamente o universal. Sem rendição nem mácula. Os bondes circulavam em quase toda cidade.  Seus passageiros, sem a pressa dos dias de hoje, deixavam entrar em seus corações a beleza singela da cidade que amavam. Êxtase num pomar. Esplendor de vida e sentimentos. O ritmo da vida na cidade não conhecia o estresse nem a ansiedade. A rotina diária seguia um curso inalterável, como aquela conclamação de Veríssimo de Melo, às 18:00 horas: “chegou a hora do pão”.

Os homens capturam sentimentos, sonhos e experiências do passado para legitimar seu presente. A alma da cidade hoje é o que ela foi no passado. É intemporal, vaticinou João do Rio em “A Alma encantadora das Ruas”. São vivências. Como as que ganharam perenidade em “Cabra das Rocas” de Homero Homem. Em todas as manhãs, o sol despontando e o dia nascendo, a cidade vive, unindo passado e presente…   

Invoco, emocionado, belíssima crônica de Rubem Braga. Decantando o viver no Rio de Janeiro. Chamando-o de “paraíso terrestre”. O meu paraíso é Natal.  Sempre viva na ternura dos que verdadeiramente a amam e liricamente a possuem.

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