As ventanias, bruscas e fortes, sobretudo na imensidão da noite, rompem a calmaria do sono da cidade. Os morros que a adornam parecem declamar, aos primeiros clarões da aurora, a poesia da natureza. Ostentam sua indumentária verdejante e albergam pássaros, que cantam sua renovada saudação ao novo dia. É uma espécie de sinfonia pastoral, que, infelizmente, é despercebida pela maioria da população. Mas, ainda hoje, desperto para assistir esse florescer do dia, aspergindo o esplendor da vida em todos nós. Os pássaros daqui gorjeiam expansivamente. Evocam o canto melodioso das cotovias, que encantavam e inebriavam Romeu e Julieta. Somente o gênio de William Shakespeare foi capaz de sentir e expressar esses momentos eternos.
Há conceitos sedimentados séculos e séculos atrás. Alguns emergiram da aurora dos tempos. Homero, na Ilíada e na Odisséia, decantou o espírito libertário de povos que habitavam margens de mares e oceanos. Seu mais notável personagem, Ulisses, possuía os atributos da coragem e da ousadia ante o desconhecido. Provinha de uma ilha: Ítaca. A provinciana Natal dos anos 20, 30, 40 e 50, cenário das emulações e confrontos entre xarruas (moradores da Cidade Alta) e canguleiros (habitantes da Ribeira e das Rocas), está consagrada nas “Actas Diurnas” de Cascudo. Essas crônicas enaltecem hábitos, costumes e sonhos de uma cidade voltada para o mar. Cidade livre, aberta, imbuída de um espírito talássico, como sempre dizia e repetia o saudoso Odilon Ribeiro Coutinho. Espírito e circunstâncias genialmente revelados por Newton Navarro.
Somos universais. Temos sonhos estendidos e debruçados sobre o mundo. Sentimos, sofremos ou desfrutamos suas alegrias e tristezas. O amor à mulher amada, à terra e aos seus encantamentos. Eis o tema exclusivo dos nossos poetas. Reporto-me ao meu tio-avô Gotardo Neto, cujos poemas suspiraram a amargura do amor perdido, a desilusão da paixão desfeita, a perda, mas não o esquecimento, da musa de sua vida e dos seus sonhos. As cartas de Heloísa eternizaram seu amor por Abelardo. As de Gotardo projetam os mesmos sentimentos no infinito. A poesia de Ferreira Itajubá e Otoniel Menezes é universal. É lírica e é épica. Seus sentimentos e sua versatilidade assim se demarcam: Laura e Petrarca, Beatriz e Dante, Julieta e Romeu, assumiram nesses poetas versões locais dos seus dramas e tragédias. Através da poesia os dois sublimaram aquela maneira de ser proclamada por Cascudo em sua obra.
Há um contraponto afetivo e nostálgico. Subitamente me sinto arrebatado e reconduzido ao passado. Natal dos anos 40 e 50. Cidade da minha infância. A Avenida Rio Branco, centro e coração da cidade, era um largo e extenso corredor, onde se alternavam, predominantemente, casas em estilo “belle époque” e as grandes lojas da cidade. Suas amplas calçadas eram assombreadas por abundantes “ficus de bejamim”. Suas cercanias, ainda hoje incluem o “Grande Ponto”, as avenidas João Pessoa e Ulisses Caldas, as Praças João Maria, Sete de Setembro e André de Albuquerque, formando, naquele tempo, um conjunto harmonioso, bucólico e saudosista. Subsistia um clímax evocativo do pós-guerra. As pessoas viviam descontraidamente. A placidez do cotidiano era contagiante. Laços provincianos coexistiam com as inovações trazidas pela Guerra nos hábitos e costumes. Germinava latente, desde os tempos gloriosos e aventurescos da aviação, uma vocação cosmopolita.
Bares, restaurantes, casas de lanche e sorveterias, confeitarias, o célebre “Natal Clube”, os cinemas Rex e Rio Grande, a Praça Pio X (que não mais existe), ainda exibem, em minha memória, as marcas de uma época em que o regional incorporava espontaneamente o universal. Sem rendição nem mácula. Os bondes circulavam em quase toda cidade. Seus passageiros, sem a pressa dos dias de hoje, deixavam entrar em seus corações a beleza singela da cidade que amavam. Êxtase num pomar. Esplendor de vida e sentimentos. O ritmo da vida na cidade não conhecia o estresse nem a ansiedade. A rotina diária seguia um curso inalterável, como aquela conclamação de Veríssimo de Melo, às 18:00 horas: “chegou a hora do pão”.
Os homens capturam sentimentos, sonhos e experiências do passado para legitimar seu presente. A alma da cidade hoje é o que ela foi no passado. É intemporal, vaticinou João do Rio em “A Alma encantadora das Ruas”. São vivências. Como as que ganharam perenidade em “Cabra das Rocas” de Homero Homem. Em todas as manhãs, o sol despontando e o dia nascendo, a cidade vive, unindo passado e presente…
Invoco, emocionado, belíssima crônica de Rubem Braga. Decantando o viver no Rio de Janeiro. Chamando-o de “paraíso terrestre”. O meu paraíso é Natal. Sempre viva na ternura dos que verdadeiramente a amam e liricamente a possuem.