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Entre rosas e espinhos

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Cláudio Emerenciano 

Professor da UFRN
Há expressões, palavras, sensações, que podem não mais refletir o viver em Natal. Emergiam de uma comunidade provinciana, bucólica e romântica.  Pertenciam ao seu passado recente e se incorporaram à alma e aos corações dos que viveram nesse tempo. Moldaram os valores de gerações e gerações. Que, atualmente, no mínimo integram aquele segmento dito de “meia idade”. Não se trata de saudosismo, nostalgia, ou incompatibilidade com os novos rumos e os novos tempos. Pois o fenômeno e as circunstancias são universais. Alcançam a humanidade como um todo. Há um processo em marcha de planetização da insensibilidade, da indiferença, do individualismo, do despojamento de posturas que convergem para um mesmo fim, como a solidariedade e a fraternidade. Geradas no mais íntimo de tantos quantos abrigam e desfrutam da paz de espírito. Paz que amplia em cada um a percepção do que é essencial, verdadeiro, permanente e transcendental na vida. Paz que infunde uma luz interior, que suscita sensibilidade para a partilha e fruição da vida. Eis por que Luiz da Câmara Cascudo via e vivia o mundo daqui mesmo em Natal. Bastava-lhe mergulhar no panorama humano e sentimental de sua cidade para sentir todas as cidades e todos os homens do mundo.
Natal da minha infância. Dos junhos e julhos, em que a cidade se envolvia por um manto orvalhado. Desde o crepúsculo até a manhã do dia seguinte. Vestimenta que Alvamar Furtado comparava ao “fog” londrino. Não era o “manto diáfano da fantasia”. Roupagem tecida pela própria natureza. Era a Natal esplendorosa de verde nas ruas, nas casas, nas praças e nos jardins. As mangueiras e mungubeiras que formavam aleias, delineando caminhos e roteiros de sombras por quase toda a cidade. O cheiro das flores. Dos jasmins e margaridas, que embalsamavam o humor dos seus habitantes. A cidade era, em si mesma, um ato de partilha. Categorias sociais, que sempre existiram como fenômeno histórico, sociológico e econômico, desfrutavam e compartilhavam da alegria de viver. Não estávamos no paraíso terrestre, numa espécie de “Shangri-Lá” (sede da utopia de James Hilton no romance “Horizonte Perdido”). Mas vivíamos uma realidade social onde predominavam laços humanos fundamentados no compromisso com o SER. O TER era um meio, um instrumento insusceptível de desviar ou modificar a identidade de um com o outro. Independentemente de sua categoria social. Ressurgem nessas recordações dois personagens típicos e singulares. Que, desde os primeiros clarões do dia, deslocavam-se de suas modestas casas, nas Quintas e no Alecrim. Percorriam a Cidade Alta, o Tirol e Petrópolis. Vendiam seus produtos. Domicílio a domicílio. Eram o cuscuzeiro e o verdureiro. Estampavam uma serena alegria em seus rostos. Não se queixavam da vida. Reconheciam as adversidades, mas nunca lhes faltavam a ajuda e a solidariedade de um parente ou um amigo. Por isso, sentiam-se seguros, confiantes e tranquilos. Seriam capazes, em seus sonhos, de alcançar as estrelas, pois suas asas, diferentemente do mitológico Ícaro (cujas asas eram de cera), possuíam um conteúdo indestrutível: sua fé. Eram mansos, justos e pacíficos de coração. A sua segurança pessoal emergia do âmbito de suas relações. Laços que fecundavam sentimentos e alegrias. Eram expressões de um amor sublime e mágico à vida. Eram pessoas que desconheciam o medo. Andavam por ruas da cidade sem temor algum. Cada qual se sentindo verdadeiramente senhor dos seus passos, sem nada a admoestá-lo ou inibi-lo.
Carlos Lacerda, em seu último livro de crônicas (“Rosas e pedras dos meus caminhos”), vaticinou, com o talento e a inteligência que Deus lhe deu, e a vasta cultura adquirida em tantos anos de estudos, reflexões e inquietações, que a sociedade brasileira poderia suportar tudo, menos a perda dos valores que entrelaçam, vinculam e comprometem uma geração com outra geração. Essa ruptura, ele a chamou de espinhos capazes de lancinar, golpear e fragilizar a vitalidade da alma brasileira. Esse ente, tão amado por todos nós, de todas as gerações, de todas as circunstancias da nossa História, nutre-se, para sobreviver, da multiplicidade, complexidade e variedade da maneira de ser e viver dos brasileiros. De todas as regiões e de todos os recantos do país. Dos ambientes provincianos, simples, solidários, telúricos, ingênuos, pacíficos, imunes à perfídia, à inveja e à ingratidão, aos meios urbanos, em que a natureza humana exercitava, até passado recente, com vigor, seus sentimentos: na família, ou em agrupamentos sociais Seus integrantes se conheciam, estimavam-se e se harmonizavam. Infelizmente, nos dias de hoje, tendo em vista, principalmente, a ação continuada, aética, deletéria e implacável de redes sociais e da televisão, não importam causas recentes, conjunturais e circunstanciais, processa-se violenta e linear derrocada de valores e tradições na sociedade brasileira. As cidades e os campos se convertem vertiginosamente numa “fogueira das vaidades”, onde o consumismo, as ambições, os egoísmos em todas as múltiplas manifestações, degradam o viver e o sonhar. Não se pode privar uma nação de sonhar. Crenças e sonhos são alimentos essenciais à vida de uma nação. A questão das drogas, por exemplo, cujo tráfico criminoso golpeia os quatro cantos do país, numa teia de violência e agressão ao Estado, à Constituição, às leis e às instituições, ceifa milhares e milhares, senão milhões de brasileiros de todas as idades. Um caldo mistura violência, impunidade, corrupção e desamor à vida. Há, ainda, descontrole na venda de armas, minando a segurança individual e social.    
Rosas da vida. De Natal ao Brasil. Espinhos do mundo. Que ferem os corações dos homens. As rosas precisam triunfar. Seu triunfo é a superação da condição humana, em que prevaleçam o amor, a paz, a simplicidade, a sinceridade. Preponderância de retidão, humildade, simplicidade e solidariedade. Enfim, a construção do bem e da felicidade. Nestes tempos de pandemia, em que já projetam meio milhão de vítimas no Brasil, impõe-se, como nunca, o sentimento da caridade. A consciência dessa  tragédia deve exorcizar o indiferentismo, a arrogância, a impiedade e a intolerância.  Pois, diante de tantas vidas em imolação, talvez nos reste invocar John Donne, poeta inglês do século XVI: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma parte da Terra; a Morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por Ti”.
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