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Entrevista: João Cabral de Melo Neto

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João Cabral de Melo Neto (Recife/PE, 1920 – Rio de Janeiro/RJ, 1999) forma com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira o trio dos maiores poetas brasileiros. Era filho de Luiz Cabral de Melo e Carmem Carneiro-Leão de Melo, de tradicionais famílias de Pernambuco e da Paraíba, e parente de intelectuais do porte de Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Mauro Mota e José Antonio Gonçalves de Melo. Passou a infância em engenhos da Zona da Mata, fazendo desse período um tema recorrente na sua poesia. Depois de morar no Recife, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde publicou o primeiro livro de poesia (Pedra do sono) em 1942. Ingressou no serviço público federal por concurso, trabalhando inicialmente no DASP e depois no Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores). Serviu no Consulado Geral do Brasil em Barcelona (Espanha), de onde foi removido para responder a inquérito por subversão. Inocentado, retomou a carreira diplomática, ocupando postos na África e na Europa, notadamente na Espanha, tão presente em sua obra quanto o estado natal. O cerebralismo, a objetividade e a “secura” da sua linguagem tornaram-no um caso único na literatura brasileira, sinônimo de uma dicção poética específica, “cabralina”, precursora do movimento concretista. Ganhou alguns dos principais prêmios nacionais – Jabuti, Associação Paulista de Críticos de Arte, Olavo Bilac – e internacionais – Camões, Neustadt –, e usualmente era citado como candidato (e merecedor) ao primeiro Nobel de língua portuguesa. Elegeu-se à Academia Brasileira de Letras em 1968 e tem poemas traduzidos para várias línguas. Recebeu em 1982 o título de “doutor honoris causa” da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Era admirador da poesia de Zila Mamede, que lhe dedicou dois alentados estudos bibliográficos.

Principais obras:

Pedra do sono (1942), Os três mal-amados (1943), O engenheiro (1945), Psicologia da composição (1947),O cão sem plumas (1950), Joan Miró (1950), O rio (1954), Dois parlamentos (1960), Morte e vida Severina (1965), A educação pela pedra (1966), Museu de tudo (1975), A escola das facas (1980), Auto do frade (1984), Agrestes (1985), Crime na Calle Relator (1987), Sevilha andando (1990)

A infância do poeta

É verdade que a infância em geral determina a poesia ou a obra da gente, de duas maneiras. Em primeiro lugar, preparando a personalidade do sujeito pra que ele venha a escrever ou a pintar ou a criar qualquer obra de arte. Sob esse ponto vista, minha infância, minha experiência de menino, de adolescente, foi muito importante, porque eu era de temperamento meio retraído, meio tímido, e, como eu tenho a impressão de que não podia me afirmar em certos campos, eu procurava me afirmar estudando e me esforçando. Até hoje, quando me perguntam por que eu escrevo, talvez a coisa mais profunda tenha sido isso: eu me sentir um pouco de segunda classe e ter uma certa vontade de me afirmar. De outra influência da infância [o Recife], eu só tive consciência muito tarde. Se você reparar bem, as primeiras coisas que eu escrevi quase não falam no Recife. ‘Pedra do sono’ não fala praticamente do Recife; ‘O engenheiro não fala praticamente do Recife, a não ser naquele poema sobre Joaquim Cardozo; e ‘Os 3 mal-amados’ falam do Recife incidentalmente, aliás, pra dizer do meu desespero de não poder falar do meu Recife”.

“Esses primeiros livros foram escritos ainda quando eu estava no Brasil. Em Barcelona, em 1947, eu acabei a ‘Psicologia da composição’, que eu tinha a impressão de que seria a última coisa que eu escreveria. Eu tinha a impressão de que tinha entrado num caminho de tal maneira abstrato e intelectual, que não tinha mais interesse em escrever nem via como poder escrever. Mas, é aquele negócio engraçado: pra você ver como é que a minha infância voltou de supetão, com toda minha experiência em Pernambuco… Eu me lembro que eu estava no Consulado [do Brasil] em Barcelona, em 1949 ou 1950, e naquele tempo havia uma revista de economia muito importante chamada Observador Econômico e Financeiro, onde estava uma estatística sobre a expectativa de vida no Recife. E até eu descobrir essa coisa extraordinária – que a expectativa de vida na cidade era de 28 anos, enquanto que na Índia era de 29 anos… quer dizer, isso foi um choque de tal maneira, que eu fiquei achando que eu, como pernambucano de uma classe beneficiada num estado onde a expectativa de vida era tão baixa, devia tentar fazer alguma coisa. Eu não sou político nem creio que literatura mude nada na sociedade; mas, em todo caso, achei que devia deixar meu protesto. Então, escrevi ‘O cão sem plumas’, que é a tentativa de descrever essa miséria, e foi aí que realmente comecei a saber tratar dos temas pernambucanos, que geralmente são temas da minha infância, porque eu saí do Recife às vésperas dos 23 anos. De forma que minha experiência quase toda é anterior a isso.”

Pernambucano na Espanha

“Eu vivi na Espanha 13 anos, em seis vezes diferentes, em Madri, Sevilha e Barcelona. Nós aqui do Nordeste somos muito ibéricos, basta ver a literatura de cordel, uma coisa profundamente ibérica. E a Espanha, como é um pais ibérico e um pais de caráter excepcional, talvez me tenha ajudado a ter uma compreensão de Pernambuco. Se eu tivesse servido sempre na Inglaterra ou na Suíça, talvez eu não tivesse essa compreensão retrospectiva que eu tive de Pernambuco. Ela foi enormemente ajudada pelo fato de eu esta vivendo na Espanha, lendo literatura espanhola sobre os povos primitivos espanhóis. Se eu estivesse na Finlândia, não teria.”

Nordestino no Mediterrâneo

“Eu tenho a impressão de que, se eu não tivesse vivido na Espanha, se eu morasse aqui, eu não teria escrito, porque, se você reparar bem, o tema do poema [Poema(s) da Cabra] é exatamente esse: eu fico mostrando como muita gente que não foi à Europa tem a idéia de que o Mediterrâneo é uma coisa cheia de templos gregos, é uma paisagem completamente penteada, é um negócio assim inteiramente clássico, essa palavra que quer dizer tudo. É uma coisa que a gente se engana: o Mediterrâneo é tão seco quanto o Nordeste brasileiro. É uma região áspera, aquelas pedras, aquela vegetação rasteira assim como o mata-pasto daqui; é uma coisa quase que tão dura quanto a região do sertão. E, então, na beira do Mediterrâneo – que é o berço da civilização e de onde saiu tudo o que o homem fez – eu vi um pastor esmolambado pastoreando uma porção de cabras, de forma que, se eu tirasse uma fotografia ali, poderia dizer que era uma fotografia de um pastor do Moxotó, no interior de Pernambuco. Vocês conhecem o negócio do Zé Pedrosa, que é um escultor mineiro extraordinário? Uma vez ele estava fazendo uma conferência em Minas Gerais, falando de escultura, e um sujeito disse: ‘O senhor dá licença, mas os gregos não diziam isso…’ Então, Zé Pedrosa disse: ‘Meu caro, os gregos não eram tão gregos assim, não’. Aquele poema é exatamente pra dizer que o Mediterrâneo não é tão Mediterrâneo como a gente imagina quando não se está lá”.

Jogador e torcedor do América

“Naquele tempo não havia profissionalismo no Recife. Os clubes de futebol não eram como hoje. Cada clube tinha um grupo de famílias, de forma que os Cabral de Melo em geral eram diretores e jogadores do America. Eu jogava no América e o Ademir [Menezes] jogava pelo Sport. Ele e o pai dele faziam muita força pra eu jogar no Sport, mas minha mãe detestava o Sport, era do Santa Cruz e vetava minha ida. Mas não impediu que eu fosse campeão juvenil jogando pelo Santa Cruz, no mesmo ano em que fui último lugar pelo América, jogando na posição que hoje seria o número 5 [volante]. Depois do juvenil, me desinteressei de jogar futebol, mas continuei América no Recife e sou América em qualquer lugar onde haja um. Fui para o Rio e me fiz América do Rio. Sei que amanhã vocês vão ter um clássico [ABC x América] e está claro que vou torcer pelo América. A camisa do América do Recife é verde; em São Paulo, eu sou Palmeiras porque a camisa é verde. Já que não tem América, eu torço pela cor da camisa.”

A ternura do homem X a secura do poeta

“Eu não sei até que ponto eu sou realmente terno ou se isso resulta do verniz da educação que eu recebi da minha família e depois também da minha profissão. Se fosse possível ver a maneira como eu me trato, você ia ver que eu sou um sujeito sem nenhuma ternura. O que acontece é que eu acho que o próximo não tem por que agüentar as nossas pulgas. Quer dizer: eu não tenho por que publicar coisas com minhas preocupações, com minhas angústias, eu não tenho por que falar de mim. Eu não me considero digno de fazer um só poema falando de mim diretamente. Toda experiência serve de material para um poema, mas essa experiência vai aparecer no poema sob outra forma. Ninguém tem o direito de se confessar em público, ninguém tem o direito de incomodar os outros com seus problemas e com suas pulgas. Eu escrevo de mim sempre de viés, indiretamente. Se eu escrevo sobre Ademir Menezes, eu já estou me expressando, porque eu estou escrevendo sobre Ademir Menezes – que é meu amigo de infância, é de Pernambuco e eu joguei bola com ele – e não sobre Pelé, um sujeito de Santos, que eu não conheço, é muito mais moço do que eu e que só vi jogar uma vez, no jogo do Náutico contra o Santos, em Recife. Eu vi muito Pelé no cinema e na televisão.”

Os livros preferidos

“Eu tenho uma deformação comigo: não digo que poesia seja forma, não, mas eu só sou capaz de falar de poesia, discutir arte e toda essa coisa, sob o ponto de vista formal. Eu tenho a impressão de que realmente todos nós temos uns livros que preferimos e outros que não preferimos, e que não preferimos por toda a vida. Nós passamos épocas em que preferimos uns e épocas em que preferimos outros. No meu caso, o que determina essa preferência definitiva ou provisória não é nunca o aspecto temático; portanto, não é nunca a presença ou ausência de Pernambuco. Por exemplo: ‘O rio’ é o livro pelo qual eu tenho um certo fraco, porque sinto que é um livro que eu fiz um pouco apressadamente. É um livro que eu poderia ter feito muito melhor e não fiz. É um livro formalmente cheio de defeitos e que eu gostaria de ter refeito.”

“Um livro meu que teve mais êxito, mas que eu acho talvez a pior coisa que eu fiz, é ‘Morte e Vida Severina’, que eu também gostaria de reescrever, não pra mudar uma cena, mas pra melhorar a textura dos versos, essa coisa toda…”

“Cassiano Ricardo uma vez me disse que estava completamente arrasado com o partido que eu tinha tirado em poesia daqueles temas do romance do Nordeste de 1930. Mas, ‘Morte e Vida Severina’ não é nada mais e nada menos do que eu ter tratado, com um tipo de verso ibérico, de coisas que Zé Lins [do Rego], Graciliano [Ramos] e todos os romancistas do Nordeste disseram nos anos de1930. Eu não creio que tenha trazido um tema novo para a literatura brasileira. Em vez de abrir uma fase para a poesia brasileira, ‘Morte e Vida Severina’ talvez tenha fechado em verso uma fase do romance do Nordeste. E a prova de que não abriu nada é que você não vê que a poesia brasileira tenha entrado por esse caminho.”
“Preferência é uma coisa muito difícil, porque eu julgo uma coisa sempre sob o ponto de vista formal. Eu tenho a impressão de que é uma deformação psicológica qualquer. A outra deformação minha é que sou um sujeito profundamente intelectualista. Por exemplo: um livro como ‘A educação pela pedra’, do ponto de vista formal é a melhor coisa que eu fiz, como ‘Serial’, porque são livros de temas muitos difíceis, temas altamente intelectuais. Se eu não tivesse nascido em Pernambuco e não trouxesse comigo toda essa carga, não viesse tão sujo de terra, eu seria um poeta assim como Murilo Mendes, cosmopolita, não digo sem nada de brasileiro, com mas com muito pouco, um mínimo de brasileiro.”

“De ‘Quaderna’ até ‘A educação pela pedra’ foi a fase mais criadora de minha poesia, sem dúvida a fase mais importante. Aí é que eu sinto que minhas tendências estão mais equilibradas, que não há aquele excessivo intelectualismo de ‘Uma faca só lâmina’ e nem há também aquele textura basta, grosseira e mal-acabada d’O ‘Rio’ e de ‘Morte e Vida e Severina’.”

Viver X Escrever

“O que muita gente pensa é que se expressar é fazer aquele tipo de poesia como [Augusto Frederico] Schmidt faz, como muito da poesia da Cecília [Meireles], Carlos Drummond [de Andrade], Manuel Bandeira, que é o sujeito se confessar e dizer em público abertamente as coisas e os problemas e as preocupações dele. A obrigação do poeta é criar objetos, como o pintor. Não tem por que narrar os problemas dele; tem que pintar um copo ou forma, uma maçã ou uma cena. O pintor não tem que pintar o retrato de todas as namoradas dele. Você pega os livros de Vinícius [de Morais] e vai vendo todas as aventuras amorosas dele. Eu tenho o maior respeito pelas aventuras amorosas de todo mundo, mas não tem por que ser assunto de literatura; a gente leva a vida por um lado e escreve por outro. Está claro que o que ele escreve é profundamente motivado pela vida, mas não tem que ser uma transcrição imediata, literal e direta. A experiência é uma espécie de fermento… fermento, não: é a massa com a qual o sujeito faz a obra, mas não o tema imediato e direto da obra.”

Influência de Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade

Murilo Mendes foi o primeiro poeta federal que eu conheci. Em 1940, fui pra o Rio a passeio e levei uma carta de Willy Lewin pro Murilo, e fui procurá-lo na rua Marquês de Abrantes, onde ele morava na casa de umas senhoras russas. Era uma casa meio surrealista, porque essa senhoras cosiam pra fora, de forma que o corredor da casa era cheio de manequins, uma casa misteriosíssima. Murilo Mendes me apresentou ao Jorge de Lima, Jorge Amado, Álvaro Moreyra, Carlos Drummond. Eu tinha escrito um poema chamado ‘Carlos Drummond de Andrade’ – que eu nunca publiquei, acho que perdi esse poema – e o Murilo me apresentou ao Carlos dizendo isso. Nesse tempo, Carlos era chefe do gabinete de [Gustavo] Capanema, ministro da Educação, e marcou um encontro conosco no ministério. Depois descemos nós três pra A Brasileira, que era uma confeitaria, e o Murilo ficou conversando um tempo conosco. Depois, se levantou, disse que tinha um compromisso e saiu. Quando ele ia passando pela frente da confeitaria, ele se voltou pro nosso lado com aquele chapéu grande que ele usava pra dar adeus com aquela mão enorme, aquela figura meio de fantasma, então eu lembro do Carlos Drummond ter dito isso: ‘A gente pode não gostar da poesia dele, mas não sentir a poesia da pessoa dele é impossível’. É um negócio que eu nunca esqueci, e realmente o Murilo foi sempre um ser muito mais poético do que a própria poesia.”

“Eu sou citado como um sujeito que deve muito ao Carlos Drummond de Andrade, mas eu tenho a impressão que eu devo tanto ao Carlos Drummond de Andrade quanto ao Murilo. Talvez o temperamento esteja mais próximo de Carlos Drummond de Andrade. Agora, tecnicamente, como se diz, eu tenho a impressão que minha poesia deve tanto a Carlos Drummond como a Murilo Mendes. Era uma figura extraordinária, ficou grande amigo meu por muito tempo. O Murilo, a partir de 1952, em 53 por aí, arranjou o lugar de adido cultural do Itamaraty [Ministério das Relações Exteriores] na Europa. Ele foi à Bélgica, à Espanha, à Itália, onde ficou anos e anos. E como eu sempre servi na Europa Ocidental – com exceção do meu tempo no Paraguai e agora embaixador no Senegal – Murilo nunca passou férias que não fosse me visitar todo verão. Estivesse no país que estivesse, Murilo sempre ia pra Portugal ver a sogra. E passava alguns dias no país onde eu estava, pra gente conversar anualmente. Ele reservava sempre uma semana pra ir conversar comigo.”

Sensibilidade artística

“No caso do artista, a gente espera que só goste daquela coisa parecida com o que ele faz. Eu tenho a impressão de que nós devemos mudar esse ponto de vista. A sensibilidade do sujeito é tanto mais rica quanto mais capaz ela for de ser tocada por experiências diversas das dele. Se um poeta como Murilo Mendes só for capaz de gostar da poesia parecida com a poesia de Murilo Mendes, então seria um homem de pouca sensibilidade. Eu confesso que, apesar de fazer uma poesia muito específica, eu não tenho nenhum parti pris. Um poeta que eu achava extraordinário, pra surpresa certamente ainda maior que a que faz a minha admiração por Ledo Ivo – era o Augusto Frederico Schmidt, mas isso não quer dizer que eu fizesse poesia como Schmidt. A Cecília [Meireles], que tem a poesia completamente diferente da minha, eu sempre achei uma poetisa extraordinária. Eu não creio que a gente deve limitar a sensibilidade a certas áreas em especial: eu só gosto de determinada pintura, eu só gosto de [Piet] Mondrian, então, se você me traz o [Joan] Miró, que é bom, eu fecho a minha sensibilidade porque aquilo não está de acordo com os meus princípios. Eu acho isso uma atitude completamente errada, que acarreta o empobrecimento do ser do espectador.”

Pintura

“[Joan] Miró é um artista instintivo. Se você pedir pra ele dizer o que ele faz, o que ele pretende, ele é incapaz de dizer; ele é um homem caladão. Você sente que aquele negócio de criação, nele, não é uma atividade de erudição; é uma coisa realmente de carne e sangue.”
“A sensibilidade é tanto mais rica quanto mais ampla ela for. Eu gosto de [Piet] Mondrian e gosto de [Pablo] Picasso, e Picasso não é abstrato. Salvador Dalí tem coisas geniais; então, porque Dalí é mau-caráter e eu não estou de acordo com a admiração dele pelo general [e ditador espanhol Francisco] Franco, eu vou fechar minha sensibilidade à pintura de Salvador Dalí? Não, porque cada vez que a sensibilidade é tocada por uma obra de arte, a pessoa está se enriquecendo. Você deve se aproximar da obra de arte com a alma aberta e com a sensibilidade aberta, com uma certa tolerância, esperando que seja boa e ficando feliz quando vê uma coisa boa.”

Música

“Eu não tenho ouvido, não sei cantar, sou desentoado. Eu me lembro que, no colégio, quando nós tínhamos que cantar em coro, o irmão marista me dizia: ‘Você está aí porque a classe tem que figurar no coro, mas você faz que canta, mas não canta’. Eu não tenho memória auditiva, quer dizer, eu não tenho vocação pra música e confesso que não entendo mesmo a música. É uma área que me deixa completamente indiferente. Não quer dizer que entre um barulho de um automóvel e de um avião e a música, eu prefira o barulho do automóvel e do avião. Mas, eu estando em casa, não me ocorre nunca me levantar e colocar um disco na vitrola. A música, pra mim, é como se fosse um tipo de arte dos marcianos.”

Arquitetura

“A arquitetura me interessou muito. Quando eu comecei a freqüentar os círculos de escritores no Recife, em 1938 e 1939, havia um grupo de amigos meus que eram arquitetos, e esse pessoal tinha uma porção de livros, tinha as obras do [arquiteto suíço] Le Corbusier. De forma que eu li Le Corbusier muito moço, e foi um sujeito que exerceu uma grande influência sobre mim. Mais do que a filosofia, mais do qualquer teoria estética, as teorias arquitetônicas serviram de base à teoria poética que eu possa ter pra meu uso.”

“Eu não gostaria de ser arquiteto, porque a perda de controle do artista sobre a obra é um coisa que me angustia muito. Por exemplo: teatro. Eu só escrevi uma coisa pra teatro, assim mesmo sob encomenda. Uma coisa que me desgosta no teatro é que a pessoa escreve uma frase pra ser lida de uma determinada maneira e aquela frase é lida de uma maneira diferente. Vão dizer que num livro de poesia também você escreve o verso de uma maneira e o sujeito lê de maneira diferente. Mas, acontece que o livro é lido sem que você veja. Se o leitor está dando uma outra entonação à frase que você escreveu com determinada entonação, você não tem conhecimento disso; portanto, não se angustia. Eu não gostaria de ter sido arquiteto porque eu me lembro de certa casas que eu vi logo que foram feitas, revi 20 ou 30 anos depois e vi como os proprietários foram modificando a casa. Se o arquiteto que fez aquela casa ressuscitasse ou voltasse pra ver a casa, ele não reconheceria mais a obra dele. A arquitetura, como o teatro e a música, é uma dessas obras em que o autor perde o controle sobre o que ele criou. A obra dele pode ser completamente lida ou interpretada de uma maneira diferente.”

Poema-processo e poesia concreta

“Eu acompanhei minuciosamente toda a coisa dos concretistas, porque eles eram meus amigos. Quando eu estava na Europa, estive com Augusto de Campos e já tinha contato com ele no Brasil, depois com o Décio Pignatari também, de forma que eu acompanhei o desenvolvimento da teoria concretista, mas não acompanhei o poema-processo. Eu não sei se eles [os poetas-processo] têm alguma coisa contra mim, mas a verdade é que nunca me mandaram nem livros nem revistas nem teorias. Eu não sei muito bem o que é poesia-processo. A impressão que eu tenho é que, depois daquele negócio bastante rígido dos concretistas, eles são uma espécie de experiência meio anárquica, uma reação meio anárquica àquele excesso de rigidez dos concretistas. Se é isso, não vejo muito sentido porque, ao reagir de uma maneira anárquica a uma coisa excessivamente rígida, você esta caindo no mesmo.”
“Eu acho que o concretismo teve uma função da maior importância dentro da nossa cultura, sob o ponto de vista crítico, porque antes dos concretistas nunca, em nenhuma geração da história da literatura brasileira, apareceu um grupo de escritores tão bem equipados culturalmente. O concretismo significa dez passos à frente dentro da cultura brasileira, dentro da consciência do fenômeno literário por parte do escritor brasileiro. Ninguém tem que ser concretista; agora, os concretistas trouxeram uma quantidade enorme de inovações que você pode aproveitar pra poesia que você esta fazendo.”

“[Os concretistas] dizem que minha poesia teve importância na teoria e na poesia deles, mas eu confesso que isso não me fez mudar minha maneira de escrever poesia e não me faz sentir responsável pelo que eles fazem. Amanhã pode um assassino qualquer dizer que matou fulano de tal porque leu um livro meu; eu não sou responsável por isso, não é? Enquanto o concretismo diz que teve influência minha, amanhã pode vir uma teoria qualquer inteiramente contrária e provar por a+b que tem influência minha, mas eu não tenho nada com isso. No mesmo momento em que publica um livro, você deixa que ele siga o caminho dele. Você é responsável por ele, mas não é responsável pelo que ele possa provocar.”

A poesia de Zila Mamede

“Eu fiquei na maior felicidade esses dias agora no Recife. Acabei de ler um livro chamado ‘Exercício da palavra’, publicado em 1975. É o último livro da Zila [Mamede], realmente excepcional, muito melhor do que os anteriores. Eu não vejo na geração dela nenhum livro mais importante do que aquele. Está claro que as experiências concretistas foram muito interessantes, e tudo isso, e muito bem… Mas, eu quero ver é o seguinte: sob o ponto de vista de uma obra concreta realizada, eu não vejo na geração depois da minha nada tão sólido, tão considerável, tão inovador e, ao mesmo tempo, sem chegar aos excessos em que a inovação não é entendida. Um dos problemas da inovação em qualquer coisa que você faz é que ela deixa de ser funcional. Você pode fazer uma coisa muito bonita, mas que não tem sentido dentro da coisa que você faz. É um negócio que aconteceu muito com os concretistas: levaram a inovação a tal ponto que ela deixou de ter sentido. Zila faz infinidades de inovações, muitas delas baseadas nas experiências dos concretistas, mas sem nunca ter perdido essa noção do funcional, que é uma noção básica em arte.”

Panorama da literatura brasileira

“Está havendo muito experimentalismo. Nós estamos numa época mais crítica do que numa época criadora. A literatura brasileira hoje está sendo feita mais por uma tomada de consciência crítica do que por um grande surto criador. É uma coisa pendular de qualquer cultura. Por exemplo: o romance do Nordeste… Você quer coisa feita com menos espírito crítico? Eu não digo crítico no sentido social; é no sentido de conhecimento da teoria do romance, da estrutura do romance. Você vê uma literatura mais escrita com os pés do que o romance do Nordeste?”

“Pela primeira vez, os escritores brasileiros estão discutindo a literatura brasileira em termos de teoria. Depois desse surto crítico, vai vir uma outra onda criadora considerável. Eu não sou pessimista.”

“Quando fez 50 anos, Manuel Bandeira ainda não tinha nenhum livro publicado comercialmente. ‘Estrela da tarde’ foi publicado com poucos exemplares, por amigos que se reuniram pra pagar o livro. Quando eu já estava no Rio, em 1942, é que saiu o primeiro livro comercial de Manuel Bandeira. Ele tinha quase 60 anos. Eu, por exemplo, tive o ‘Duas águas’ editado comercialmente por José Olympio quando eu tinha 36 anos. A gente pode ver, entre essas duas épocas, como é que a cultura brasileira mudou; quer dizer, eu com 36 anos tive oportunidade de ter um livro editado comercialmente e Manuel Bandeira não teve. Está havendo mais interesse comercial pela poesia e mais interesse pela literatura. No meu tempo de colégio, o poeta mais novo de quem você ouvia falar era Olavo Bilac. Hoje você hoje vai a uma universidade e estão explicando a minha poesia, estão explicando poesia de gente mais moça do que eu. São coisas positivas.”

“Do meu grupo do Recife – nós éramos uns dez – quase todos desapareceram. Naquela época, quem é que podia saber que uma ia ficar e que os outros iam desaparecer? Eu não me considerava melhor do que Antonio Rangel Bandeira ou Benedito Coutinho, nem melhor do que Raimundo Gullar; nós éramos considerados em pé de igualdade. Esses deixaram de escrever. É muito difícil julgar o contemporâneo e dizer qual é o que vai ficar. Você não vê exemplo melhor disso do que Augusto dos Anjos. Há pouco tempo Ledo Ivo estava me contando uma história que contaram a ele. Quando publicou ‘Eu’, ainda havia aquelas reuniões de literatos na livraria Garnier, na rua do Ouvidor, e um sujeito levou o exemplar, começou a ler e todos aqueles escritores presentes se torciam de gargalhadas. Ninguém sabe quem são esses escritores hoje, e todos nós continuamos a cada dia descobrindo Augusto dos Anjos, que está longe de ser esgotado. Os que se torciam de gargalhadas deviam ser Coelho Neto, Olavo Bilac, deviam ser os papas da literatura da época. Esse negócio de história literária é inteiramente imprevisível. A nossa época sempre parece uma época pobre. O sujeito que vem depois é que tem olhos pra julgar; eu, não”.

“Eu vejo que em todos os estados do Brasil há interesse pela poesia ou pela literatura em geral. Agora, está havendo um certo deslocamento de interesse, da poesia pra ficção. O pessoal moço está mais interessado em ficção, mas isso não significa o fim da poesia, porque sempre vai haver o sujeito que gosta do romance e o sujeito que pode gostar de romance e gostar de poesia. Nós passamos muito anos sem dar maior importância aos nossos romancistas. Eu tenho a impressão de que nunca a nossa mocidade foi tão interessada pelos problemas culturais. O que acontece é que o interesse está mais disperso. Antigamente todo sujeito que tinha interesse intelectual era capaz de escrever um soneto; hoje, o intelectual é cineasta ou é compositor de música popular ou escreve romance. As áreas de interesse cultural são muito mais numerosas. Nos tempos de nosso avô, qualquer sujeito que sabia juntar sujeito, verbo e objeto era capaz de fazer um soneto de aniversário, naquele tempo a atividade intelectual das pessoas era escrever sonetos. Hoje as coisas estão mais divididas. Isso significa enriquecimento cultural do país, porque a cultura não é só somente poesia, não é somente romance. A cultura do país é a soma de todas as atividades.”

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