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Esquina

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Dácio Galvão
Curtindo uma tremenda ressaca meu amigo Bissau amanheceu ontem sentado no batente de um prédio vazio. Olhava para tudo e para todos equidistante sem apetite para falar ou tecer críticas aos populares assépticos que lhe passavam em frente. Indiferentes. Sua condição de cor e de pobre parecia influenciar passantes em aparentes graus de alheamentos e soberbas. Quiçá nem isso.

A vida hoje tem sido tão louca e competitiva que muitas vezes se sai no automático, como se costuma dizer, para justificar atitudes de soslaios. De todo modo, acostumado ao cotidiano discriminador, fazia muxoxo para uma suposta amiga invisível. Beijava o vento, o nada. Era essa a condição. Na impossibilidade de… Distribuía selinho a esmo num espaço impalpável.

Para os que estão acostumados a vê-lo olhar panorâmico e silencioso sabem do seu alto grau de desprezo por ostentação ou coisa do tipo. Salto alto. Símbolo gestual que signifique suporte social. Aparente elevado status quo econômico que dá fulcro e folga para arrebitar nariz ou levantar a cabeça numa linha de horizonte descabida… Definitivamente não lhe apetece nem lhe seduz. Antes desdenha. Desvia a atenção e ri. Ironia mordaz de quem conhece e convive na província há anos e bem sabe desse refluxo excedente de uma histórica cessão onerosa elitista.

Há anos que sua postura comportamental vem se colocando numa textura tal que as cenas pintadas do bairro prescindem da sua imagem e semelhança. Não se consegue ausentar a presença dessa figura forte e expressivamente fluida em desacordo aos rumos intolerantes e discriminatórios tão em voga. Sejam eles no território em que habita sentidos implícitos no comum banal. No corriqueiro chão cimentado e dividido em largos traçados por Giácomo Palumbo. O greco-italiano. Sejam eles em alhures. Noutras rotas.

Negro Bissau radicaliza sem discursos. Não é eloquente e descarrila retóricas empoderadas. Sua vociferação, seu trem, é não-verbal. Antes trafega por trilhos não ferrosos. Se sustenta qual campo magnético acima do chão. Uma levitação social por auto exclusão. E os vagões emergem na apatia dos valores fúteis voláteis cultivados na imodéstia de pequenos burgueses.

Sempre-sempre o negão é flagrado assobiando bem baixinho o samba de Martinho da Vila que remete aos versos: “Mas burgueses são vocês / Eu não passo de um pobre-coitado / E quem quiser ser como eu / Vai ter é que penar um bocado”. Soa a remessa metafórica para os transeuntes que o imaginam otário. Nada disso. Sem ódio ou rancor vai observando as cenas que se sucedem e se coloca no seu silêncio a fazer contraponto a caretice reinante.

Algumas repetidas outras adicionadas por novas cores e condimentos. – É assim mesmo! A história é circular. Assevera sem conformismo.

Aos poucos optou por desprezar os colegas do dia a dia. Muitas opiniões sobre o atual cenário político e incompreensões decorrentes o conduziram a desistir de tentar fazer valer seu comportamento. Tomou a posição se impulsionando para o campo árido da solidão. Lúcida e apontada para o ostracismo. Preferiu embarcar num processo de mudez. Por fora e por dentro o momento é de calar e observar. Nem direita, centro ou esquerda. Populismo de nenhum vértice. Por enquanto buscou uma ideologia própria para viver. Nada de se deixar levar na onda do libelo nacionalista atrasado ou fora de padrão. Reacionário. Ou de bandeiras anticorrupção manipuladas para fins demagógicos. Corrupção é crime e violenta o estado direito. Por consequência, contra o cidadão. Nada mais. As sacanagens e furos da esquerda é preciso expurgar. Ou seja, para ele não é motivador o exercício da fala. encarna a cidadania tacitamente. Não há interesse em movimento do corpo. A não ser o samba da quinta-feira e do sábado no Beco da Lama. Fora do circuito do trabalho formal vai se virando como pode. Jogando seu corpo no mundo e dentro do possível andando por todos os cantos. Não mais só a esquina que já é emblematicamente seu reduto. Regido pela lei natural dos encontros tempera a causalidade apregoada no texto do poeta baiano Luiz Galvão. Mistério do Planeta. O astuto observador vai jogando e se jogando num embaralhar que pode virar carteado de sueca ou pif paf ou de buraco. Cartas de poker jamais. É avesso. Não curte.

Quando de um brevíssimo diálogo que mantivemos sugeri que ponderasse a posição de isolamento. Retrucou adiantando ser necessário. Argumentara ser possível observar melhor os desdobramentos dos fatos. E destilar o trânsito de pedestres e de veículos reluzentes que passam queimando o brilho de suas retinas. Afirmara na ocasião o quanto eles de muito dizem. Falam por si. Parada de saber psicanalítico. De inconsciente coletivo.

 Para refrescar torceu contra o Club Atlético Boca Juniors no jogo que classificou o rival Club Atlético River Plate para a partida final da Taça Libertadores da América. No estilo. Sozinho e sem comentários. Olhos plantados na tela plana do televisor da vitrine de uma loja poderosa. Como todo flamenguista acredita no timaço comandado por Jorge Jesus. Mas o maior ídolo é Vitinho jogador nascido e criado no Complexo do Alemão. Genuíno made in favela. Não vacila entoando o bordão vitorioso da torcida rubro negra: “Festa na Favela”!  É a pele que habita. Inusitadamente se ouve Cazuza. Isso mesmo. O cantor-poeta se faz presente numa sonoridade aguda labial. Pinta silvado numa sincopada levada rock and roll. É a música Ideologia. Ressignificando a afirmação da sua postura e descrença diante do quadro partidário caótico do país: “Meu partido / É um coração partido / E as ilusões estão todas perdidas / Os meus sonhos foram todos vendidos / Tão barato que eu nem acredito… E aí decodificando a letra indaguei: barato? Não respondeu e voltou a sentar no batente.  Me ignorou e se trancou dentro de si novamente. Ostra fora d’água.

Já termina outubro e novembro se avizinha ouvindo as conversas. E nós vamos indo. Procurando se reiniciar também. São nuvens obscuras que se movem. Os apelos e sentimentalismo estrategicamente ordenados para as massas com pouca politização e subcidadania vão dominando. Ou dividindo e ou rachando. Para todas as classes e credos. Até quando? Bissau falou que os movimentos sociais podem definir novos rumos. Mas já não há tanta esperança. O passado recente não nos abona e muito menos o agora presente. Nada animador. Até quando? Não se sabe. Conversas de poderes não é brincadeira não meu irmão!

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