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Estranhamento

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Dácio Galvão
Escritor, poeta, e secretário de Cultura de Natal 
Volta e meia me flagro ouvindo em uma das plataformas digitais a intrigante valsa-seresta composta pelo virtuose guitarrista Heraldo do Monte. Fez o arranjo e executou na introdução um shamisen. Sábia captura da melopeia cascudiana. Em seguida vem a voz do ex-Novos Baianos, Paulinho Boca cantarolando o Kakemono, poema de Câmara Cascudo. A narrativa da massa sonora se desenrola no contrabaixo de Arismar do Espírito Santo. Na flauta de Léia Freire e nos violões de seis e de sete cordas respectivamente, de Luís Monte e Edmilson Capellupi. Viagem sem volta. 
Curiosidade: a música nasce de um texto poético com título japonês pulsando em meio a abundante produção literária modernista na segunda década do século passado. Fora publicado num jornal do nordeste. No Recife. O provinciano incurável nomeou poemas com títulos curiosos: Shimmy, Lundu de Collen Moore… A alusão é direta à cultura nipônica que nos anos de 1920 não tinha quase nenhuma reverberação nas letras brasileiras. Nem na prosa nem no verso, as formas de haicais. A brevidade linguística era recurso de comunicação rápida. Aportava através da ressonância de escritores franceses. A poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade era coloquial-sintética. Mas não era essa a busca de Cascudo. Os escritos diversos em nuances nipônicas de O. Andrade, em 1924, de Cascudo (um único poema), em 1925, e Guilherme de Almeida, em 1936, fecham as influências orientais. No número dois do periódico de arte moderna, Klaxon, em 1922, porta voz do movimento modernista havia o texto “A Poesia Japonesa Contemporânea”.  Onde há fumaça, há fogo! 
Mas o autor de Joio, 1924, quando elabora Kakemono faz opção por estrutura construtiva do verso livre e do poetar parnasiano. O poema traz na estrutura, na temática, repertório e retórica a transição parnaso-moderna. Espelho interior do inventor. Estava relacionado para compor um livro (“Chamar-se-á Caveira no Campo de Trigo”), que terminou não sendo publicado. Manifestou o desejo da edição em correspondência ao jornalista Joaquim Inojosa.   
Conjecturas a parte é possível pensar que a tendência orientalizante veio de isolada decisão do autor. Jamais saberemos, se. Ele tinha a percepção para certos fragmentos nipônicos em textualidades artísticas sul-americanas, naquela época. A mistura na fundição da moeda corrente: trabalhou a estrutura construtiva do verso livre junto aos resquícios do poetar parnasiano. Dialogismo. Cascudo não sofreria influências de haicais japoneses. O poema popõe a cena e convoca à confecção textual-lírica-pictórica. É ideogramático. E composto a partir do kakemono conforme anuncia o título. Atiça o feminino idealizado na forma de um “fino lírio japonês” trajado na personagem eixo do poema: “e o teu quimono / que envolve tua cinta esguia e fina”! Salienta formas e provoca sensualidade. 
Resta ouvir, visualizar… Esperar que a chuva passe e o vento ulule fora da vidraça. O verão já se escancarou.  Viktor Chklovski, formalista russo, sugere que olhemos para o artístico com estranhamento. Ou seja, para “arte como processo” contrário a mimesis platônica. Kakemono requer essa retina.
vOs artigos publicados com assinatura não traduzem, necessariamente, a opinião da TRIBUNA DO NORTE, sendo de responsabilidade total do autor.
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