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Fahrenheit 451

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Ivan Maciel de Andrade                                                                                                           
Procurador de Justiça e professor da UFRN (inativo)                                           

Fatos muito estranhos estão ocorrendo no cenário público brasileiro. Escolho um que me parece sintomático: o diretor do Centro de Artes Cênicas da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Roberto Alvim, chamou a atriz Fernanda Montenegro de sórdida. Os dicionários apontam os significados desse adjetivo: “Algo que possui a capacidade de incitar o asco, que é repugnante ou asqueroso ou que possui características daquilo que é baixo, vil, torpe, corrupto”. O que fez Fernanda Montenegro para merecer um insulto tão carregado de ódio, tão ofensivo, tão injurioso? De que grave infração ética é acusada, cometeu algum crime hediondo, qual a indignidade ou o procedimento ignóbil que praticou?

Fernanda Montenegro, de noventa anos, é considerada, como acredito que a grande maioria saiba, a nossa melhor atriz, a “dama da dramaturgia e do cinema do Brasil”. Ela posou recentemente para uma foto de capa da revista “Quatro Cinco Um” fantasiada de bruxa e amarrada dentro de uma fogueira destinada à queima de livros. O título da revista é uma homenagem ao livro “Fahrenheit 451” (a temperatura para incineração do papel) de Ray Bradbury. Ah, então a sordidez de que fala Roberto Alvim não está propriamente em Fernanda Montenegro, está na alusão ao livro de Bradbury. Mais especificamente, na mensagem que ele contém contra governos que combatem a cultura, abominam livros e perseguem seus autores, cerceiam o direito de crítica e reprimem a liberdade de expressão.

O personagem principal do distópico “Fahrenheit 451” é um bombeiro que herdou essa profissão do avô e do pai. Sua missão é queimar livros e prender as pessoas que os guardam, que os leem, que os compartilham com outros aficionados. Por quê? Porque os livros ensinam a pensar, provocam questionamentos e contestações. São o símbolo da humana inquietação intelectual, da especulação filosófica, do pensamento científico, da imaginação (poética e ficcional) sobreposta à insípida mesmice do cotidiano. A preservação do status quo exige que eles sejam não só proibidos como destruídos.

Mas, no fim das contas, sórdida é a forma como foi tratada Fernanda Montenegro. Uma forma abjeta e, para culminar, despropositada. Se a foto que tanto irritou Alvim homenageia “Fahrenheit 451”, então ele deveria despejar sua virulência raivosa contra Bradbury, o genial escritor norte-americano de ficção científica. O que se dá é que as atitudes de Alvim ecoam um pensamento dominante na área cultural do governo: tanto assim que 19 funcionários da Funarte foram demitidos, mas ele continuou. 

Mais um fato sintomático: segundo a imprensa, empresas estatais do governo federal instituíram um sistema “de aprovação prévia (leia-se: censura) para projetos de natureza cultural”. Não são permitidos temas considerados “polêmicos” e ficam submetidos a escrutínio a tendência política e o perfil do produtor cultural nas redes sociais. O que enseja, pelos critérios do governo, vetos a temas e autores que violem preceitos do fundamentalismo religioso ou retrógrados padrões comportamentais.

Esse é o caminho para a glorificação da ignorância, que tem como vítimas preferenciais as manifestações artísticas – um quadro emoldurado pela obsessiva revalorização da ditadura de 64.

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