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Ferreira Gullar no Flin

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Ignácio de Loyola Brandão é uma das principais atrações do IV Festival Literário de Natal, promovido pela Prefeitura, que começa no dia 14, montado na Praça Augusto Severo. Dos mais importantes nomes de nossa literatura, com mais de trinta livros publicados (romances, contos, crônicas, infanto juvenil, teatro, biografias), além de jornalista com mais de 60 anos de ofício. Detentor de vários prêmios literários (Jabuti de 2008, com “O menino que vendia palavras”, escolhido como o melhor romance do ano), também anda fazendo – nesta quadra da vida chegando aos 80 anos) – espetáculos musicais dividindo o palco com a filha Rita Gullo, cantora e atriz. Ela canta e ele conta histórias da sua vida, suas memórias. Nome do espetáculo: “Solidão no fundo da agulha”. Será apresentado no Flin.

No amanhecer de ontem li a crônica de Ignácio Loyola Brandão no jornal O Estado de S. Paulo, onde  escreve uma vez por semana. Há muitos anos. Título: “Ele queria a felicidade”. O mote é o poeta Ferreira Gullar. O texto de Loyola é desses que se ler, reler e recorta para guarda na carteira. Brindo os meus queridos leitores dessas várzeas perdidas daqui, transcrevendo-o. Em fazendo isto homenageio também os fiéis amigos do Cova da Onça e o mestre Ambrósio Azevedo, memória viva de São Paulo do Potengi e o maior comedor de bolo daquelas ribeiras, que esta semana fez 89 anos, firme que só um cadete da Marinha onde, aliás, serviu durante a Segunda Guerra Mundial, atirando nos alemães por estas águas altas do Atlântico.  Leiamos Loyola:

“A primeira notícia de domingo veio logo de manhã, em um e-mail enviado de Goiatuba, Goiás, por meu irmão João Bosco: Ferreira Gullar morreu. Não abri os jornais colocados na porta, nenhuma outra informação do dia me interessaria. Muito mais tarde, abri a Folha e recortei a última crônica do poeta, sobre Marx, os deserdados de Marx, os desorientados de Marx.

“Lamento ter conhecido Gullar pessoalmente muito tarde. Achava curioso seu pavor de avião, eu que não saio do ar. Muitos perderam sua presença, sua palavra, seu carisma, devido a este medo. No final, morreu na cama. Admirei seu último pedido à companheira Cláudia Ahimsa: “Não deixe me colocarem em aparelhos. Não prolonguem meu sofrimento, que me deixem morrer em paz”. Dignidade e nenhum medo da morte, que ele viu se aproximar. Quantos têm essa coragem?

“Eu te vi Gullar, certa vez, chegando a Flip como se fosse um super star, as pessoas enlouquecidas se atirando sobre você. Em busca de quê? Só podia ser da poesia. Como podia você, um homem magro, quase descarnado, cabelos escorridos, rosto arcado por todas as vicissitudes, se tornar bonito, transparente, atraente?

“De onde vinha esse teu charme? Aquela luz como um halo à sua volta no palco, subjugando aquela plateia exigente, talvez elitista, blasé, da Flip: Da poesia. Lembro-me de que, a certa altura, veio do público a pergunta “complexa” de um erudito de ocasião, um daqueles “sábios” que usam a plateia do outro para tentar brilhar, daquelas enrolações cheias de citações. Quando todos esperavam uma resposta difícil, filosófica, e tudo mais, você simplesmente comentou, debaixo de aplausos, gritos e risos: “Meu amigo, tudo o que eu quero hoje é a felicidade”. Conseguiu:

“Na manhã de domingo passado, enquanto as pessoas em quase todas as cidades brasileiras se preparavam para sair às ruas e dizer não a esse governo, não a essa Câmara abjeta, covarde, repulsiva, pusilânime, asquerosa, você nos deixava. Coloquei um CD de Fagner, ouvi Borbulhas. Algo me veio à mente, busquei até encontrar Note Veloz, poesias suas de 1962 a 1975. Ali está o poema, escrito há tantos anos, que é o retrato (a profecia) do Brasil de agora, deste tempo de guerra entre Eles x Nós, como tantos desencontros:

Borbulhas
O cantor Fagner é outra grande atração do Flin. Também  amigo, amigo e parceiro, de Ferreira Gullar. Algumas de suas canções têm letras de autoria do poeta maior, todas de sucesso popular. Ah, seria bacana chegar no Flim e encontrar juntos, no mesmo palco, Ignácio Loyola e Fagner falando sobre Gullar, passando pela vida e obra do poeta. Loyola, contando histórias, recitando poemas e Fagner cantando as canções letradas pelo poeta. Podia começar, por exemplo, como “Borbulhas de amor”:

“Tenho um coração/ Dividido entre a esperança e a razão/ Tenho um coração/ Bem melhor que não tivera. // Esse coração/ Não consegue se conter ao ouvir tua voz. / Pobre coração/ Sempre escravo da ternura. // Quem dera ser um peixe/ Para em teu límpido aquário mergulhar/ Fazer borbulhas de amor pra te encantar/ Passar a noite em claro/ Dentro de ti. // Um peixe (…)”

Houve um tempo, já passa dos 50 anos, numa das pontas da Praça Augusto Severo, onde acontece o Flin, havia o Tabuleiro da Baiana, um bar que emendava o dia com a noite sem intervalos. Era um aquário.
Outro grande poeta, Luís Carlos Guimarães, o celebrou:

“Mais que navio ancorado/ na vizinhança da praça, /era ilha de pedra e cal/ dia e noite devassada, / aberta aos ventos cardiais (…) “As mulheres da Ribeira/ Rua 15 de Novembro/ e pensões de nomes vários – / como ovelhas tresmalhadas/ na noite, tocando guizos, / fluíam nas transversais/ Doutor Barata e Sachet, / ao doce bar aportavam / à procura de um pastor / que na cama saciasse/ a fome do sexo em brasa/ As impurezas da noite/ na manhã eram lavadas/ com a água da luz solar (…) “Entre os teus bares, Natal, / – um, lembrarei entre todos: / Tabuleiro da Baiana, / em defesa do progresso/ demolido da Ribeira.”

O Flin prestaria, então, sua homenagem ao poeta maior.  E para encerrar a noite, o coral das meninas da Rua 15 de Novembro, olhando para a estação do trem, ao lado, cantaria: “Lá vai o trem com o menino / lá vai a vida a rodar / lá vai ciranda e destino / cidade a noite a girar / lá vai o trem sem destino / pro dia novo encontrar / correndo vai pela terra / vai pela serra / vai pelo mar/ cantado pela serra do luar / correndo entre as estrelas a voar/ no ar/ no ar”.

Do fundo de meu quarto, do fundo/ de meu corpo/ clandestino/ ouço (não vejo) ouço/ frescor no osso e no músculo/ da noite/ a noite/ a noite ocidental obscenamente/ acesa/ sobre meu país dividido em/ classe’.

“Até um dia Gullar. Não sei se aí há dias e noites ou o que há. Talvez até breve, nunca sabemos. Que sei eu de mim? Abrace por aí o Sábato Magaldi, o Moacyr Scliar, o Ubaldo Ribeiro, o Ariano Suassuna.

“P.S. aos amigos, leitores: Amanhã, sábado, 18 horas, após sete meses o show meu e de Rita Gullo, Solidão no Fundo da Agulha, se despede do Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura, Conjunto Nacional. ”

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