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Figuras

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Foram duas semanas encarrilhadas de acontecimentos. João Gilberto sempre. E a Flip indo para décima sétima edição. Que bom que a flip está existindo no Brasil. Esse o comentário que ouvi do escritor Eucanaã Ferraz quando tentávamos comprar o bilhete para a conferência de abertura que seria proferida por Walnice Galvão. Assino embaixo.

Depois da morte de João Gilberto, quando me dei conta estava lhe rendendo graças. Todos nós cantamos regidos por José Celso Martinez Correia o refrão “tupi or not tupi” na tenda dos escritores da Festa Literária de Paraty. Sim. Uma reunião ou comunhão de aficionados pela literatura entoando o bordão que o antropófago Oswald de Andrade incluíra no seu famoso manisfesto modernista. A revolução caraíba? Me perguntava.

Era uma homenagem ao mestre João. No palco junto com Zé Celso o índio Professor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora – MG, Ailton Krenak. Na pajelança balançava o maracá e espantava os maus espíritos. Rito coletivo iniciático de limpeza de almas. E todos repetindo baixinho em uníssimo “tupi or not tupi”! Era esse o toque de Zé para que nós em comunhão celebrasse com ironia, humor, amor e profundamente a memória de João.

O homenageado da festa era Euclides da Cunha trazendo o Arraial de Canudos e o líder Antônio Conselheiro. O filme Deus e o Diabo na Terra do Sol fora exibido no fluxo das metáforas atualizadas do movimento social massacrado por forças militares do governo de Prudente de Morais.

Gosto e legitimo. Mas devo dizer que não tenho a máxima predileção pelo movimento musical da Bossa Nova. Prefiro antes, outras linguagens e outras palavras poéticas. Talvez por ter sido flho direto do Rock And Rool, do Folk e do Blues. Da linhagem que vem de Chuck Berry misturando Bob Dylan. Trazendo estilhaços da poesia de Timothy Leary, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William S. Burroughs. Das guitarras de Muddy Waters e BB King. Do som do trompete de Miles Davis. Das performances dos Rolling Stones e dos Beatles. Dos suicidas Jim Morrison , Janis Joplin, Jimi Hendrix. Dos virtuoses Jimmy Page, Carlos Santana, Peter Townshend, Frank Zappa, John Macaughlin… King Crimson, Yes, Pink Floyd. De festivais do calibre de Monterey Pop e Woodstock. Forjado no Tropicalismo de Caetano, Gil, Mutantes, Tom Zé, Rogério Duprat, Capinam e Torquato Neto. Adepto da poesia concreta e do poema processo. Lembrando de passagem que Cazuza também foi fã de Ginsberg e o cita na canção “Só As Mães São Felizes”, Quiçá por ter optado por tanto barulho bom o caminho tenha sido árduo para chegar em João Gilberto. Será? Sei lá.

Custei muito, custei demais para entender o significado do “silêncio” de João. A alardeada batida do violão e a extensa inflexão de voz. A reelaboração de Ari Barroso, de Herivelton Martins, de Caymmi… De boleros mexicanos. Ouvi suas canções e li o Balanço da Bossa e outras Bossas, livro de Augusto de Campos. O ensaísta o compara no rigor, na disciplina, ao sentir o mesmo “horror físico ao ruído” com o compositor austríaco serialista, dodecafônico Anton Webern revolucionário da música contemporânea com Arnold Schoenberg, Alban Berg. Augusto finaliza o texto vaticinando mas deixa no ar uma indagação: ‘Webern, a esfinge. Webern, o justo. Webern e João. João e o violão, o cantor e a canção. Como distinguir um do outro?’ o popular e o erudito fundidos num espectro do som do silêncio. Amalgamados na sonorização e vocalização da perfeição. Que em última estância é desconstrução. Ou construção ao avesso.

Não havia me esforçado tanto para perceber o silêncio do branco da página utilizados nos intervalos partiturais no poema-constelação, Um lance de dados jamais abolirá o caso, do escritor francês Stepháne Mallarmé. É que em João Gilberto tudo é muito orgânico e a tradição vem perpassando Lamartine Babo (Joujoux e Balangandãs)

até Caetano Veloso/Agripino de Paula (Sampa). Ademais vem num confronto constante de estéticas brasileiras onde a entidade música busca a identidade cosmopolita e nela consegue se firmar. É preciso compreender bem esse processo aberto e dialógico.

Mallarmé numa projeção evolutiva já constituída por vanguardas históricas inspirou a

música de Claude Debussy junto a radicalidade linguística e tipográfica. A depuração do tempo ajuda muito uma vez que o poeta se exercitara em tal aventura visual no final do sec XIX. Contudo, o branco intervalado no poema foi para mim mais fácil de captar que o branco-silêncio-sonoro da música de João Gilberto. A Bosssa Nova se insere na linha evolutiva da criação musical e se projeta nas veias de continentes filtrada de inúmeras formas por Django Reinhardt, Stan Getz, Gil Evans, Claus Ogerman, Davis…

Musicalmente é a elaboração de um estilo próprio. Do ponto vista do texto mesmo tematicamente homogêneo o alcance ou voltagem não tenha tido equivalência inaugural.

Fato é que no banquete dramatúrgico-musical da Universidade Antropófaga que abril a festa Literária de Paraty e mais a mesa do xamã Ailton Krenak e Zé Celso estavam irmanados Oswald de Andrade, Euclides da Cunha, Glauber Rocha e João Gilberto. Fácil de entender: essas representações é o Brasil codificado numa nação grandiosa fora do ufanismo nacionalista. Olhando no próprio umbigo se impondo e dialogando para o mundo. Basta uma nota só. Ou o canto de João com Rita Lee. O canto de João com Gil. Com Bethânia. Caetano. Ou ele sozinho dissonante com seu e único cantar.

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