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Flicts, de Ziraldo, jovem aos 50 anos

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Bia Reis

Era julho de 1969 e o mundo ainda estava atônito com a chegada do homem à Lua. Ziraldo levou a Fernando de Castro Ferro, editor na Expressão e Cultura, a proposta de transformar as tirinhas semanais que publicava na imprensa no livro Jeremias, o Bom. Saiu da editora com o aval de Ferro e uma encomenda: um livro para o público infantil, que precisaria ser entregue num prazo curtíssimo. Ziraldo topou e, em apenas dois dias, criou Flits. A obra que marcou a estreia do autor na literatura infantil é também um divisor de águas na história do livro no Brasil. Neste mês, em comemoração aos 50 anos de publicação, Flict chegará às livrarias em uma edição que resgata a versão original, com 80 páginas.

Ziraldo tem 85 anos é o criador do desenho Menino Maluquinho

Ziraldo escreveu a obra em julho do ano de 1969

Com um projeto gráfico arrojado para a época e que ainda hoje surpreende os leitores, Ziraldo transformou as cores em personagens. Produzido durante a ditadura militar, o livro conta a história de uma cor que não encontra o seu lugar no mundo e, de forma poética, abstrata e sensível, possibilita uma interpretação aberta. Para uns, Ziraldo fala de liberdade e exílio; para outros, de preconceito e diversidade.

Em Flicts, Ziraldo imagem e palavras se interrelacionam para construir a narrativa. Em uma época em que as imagens eram figurativas, o autor foi disruptivo. E subverteu ainda o processo de produção. Utilizando um livro impresso como base, fez as ilustrações com pedaços de papel colorido, tesoura, estilete e cola. A falta das ferramentas tradicionais não foi obstáculo, mas sim combustível para a criatividade do autor.

“Quando eu terminei, percebi que tinha feito um livro fora dos padrões”, contou Ziraldo, em entrevista por WhatsApp, realizada com ajuda de sua sobrinha Adriana Lins, que organizou a edição comemorativa da Editora Melhoramentos. “Tem livro que permanece, tem livro que fica logo esquecido. Flicts foi um desses livros que permaneceram”, disse o autor, de 86 anos, que se recupera de um AVC sofrido em 2018.

E não foi apenas o autor que percebeu de imediato a força de Flicts. Em nota publicada já na primeira edição e que é reproduzida nesta comemorativa, o editor Ferro escreveu: “Poucas vezes terá um autor conseguido entusiasmar um editor com a rapidez e a intensidade que fui ‘vítima’, quando Ziraldo acabou de me contar a história de Flicts. (…) As palavras se tornaram inúteis. Ziraldo sabia o que havia criado e também sabia que eu tinha ‘sentido’ totalmente sua extraordinária obra”.

“Foi um impacto de crítica e de público. O lançamento eram festas que duravam o dia inteiro. Em três meses, os 10 mil exemplares se esgotaram”, conta Adriana. A repercussão na imprensa foi grande e o aproximou do escritor Carlos Drummond de Andrade, que publicou o texto O Coração da Cor festejando a obra “Que é Flicts? Não digo, não quero dizer. Cada um que trave contato pessoal com Flicts, e sinta o que eu sinto ao conhecê-la: um deslumbramento, um pasmo radiante, a felicidade de renascer diante do espetáculo das coisas em estado puro.”

Poucos meses após dar o passo histórico na Lua, o astronauta americano Neil Armstrong veio para o Brasil e foi apresentado a Ziraldo e à filha Daniela Thomas, então com 10 anos. O autor lhe presenteou com uma versão de Flicts traduzida para o inglês. Armstrong abriu o livro, leu inteiro e disse: “Você está certo”. Em seguida, lhe deu um bilhete com a frase “A Lua é Flicts”, que passou a integrar todas as edições seguintes do livro – no total já foram vendidas 500 mil cópias e há versões em inglês, japonês e esperanto.

Flicts virou referência para gerações de designers e ilustradores. O autor de livros Roger Mello, vencedor na categoria ilustração do Prêmio Hans Christian Andersen, espécie de Nobel da literatura infantil, destaca a força narrativa da imagem em Flicts. “Não estamos falando somente de um livro que traz o diálogo do experimentalismo do design com a narrativa literária. A imagem em Flicts fala por si”, diz Mello. “Não é um livro sobre essa coisa ou aquela, é um livro sobre tudo, exclusão, refugiados, guerra, tecnologia, artes visuais, sobre o humano em toda e qualquer manifestação. Falamos com o gesto e os silêncios, Ziraldo sabe.”

Para o autor e artista plástico Fernando Vilela, Ziraldo inaugurou no Brasil “um tipo de livro ilustrado experimental, em que texto e imagem são interdependentes na construção da narrativa”. “Assumindo a cor como personagem e a afetividade na percepção e construção do real, Ziraldo transforma o espaço gráfico – a cada virada de página – num campo de operações poéticas, levando experiência ficcional a uma reflexão filosófica.”

A edição comemorativa de 50 anos resgata o livro idealizado por Ziraldo, com 80 páginas, conta Adriana, responsável pelo projeto gráfico. Segundo ela, a partir da segunda edição, o livro foi reduzido para 40 páginas – as páginas duplas se transformaram, de maneira geral, em simples – para ser adotado nas escolas, e é assim que a maioria dos leitores conhece a obra. “Recuperamos a diagramação e a tipografia originais. É exatamente o projeto que o Ziraldo pensou e fez, mantendo as páginas brancas, os silêncios.”

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