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Fuga do real

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN
Espiritualidade, percepção, criatividade, imaginação, sentimentos e sonhos são atributos inesgotáveis da condição humana. São dons de Deus. Insusceptíveis de contenção, refreamento, uniformização e padronização. Cada homem detém dentro de si esse fantástico e renovado universo de sensações, desejos, aspirações, emoções, afeições e pressentimentos. Do nascimento à morte. As ações humanas podem alçar-se às dimensões ilimitadas. Confundem-se, assim, com o próprio sentido da vida. O caminhar na luz e para a luz é infinito. É a via de convergência e identidade entre o homem e Deus. A humanidade ainda não apreendeu nem alcançou a plenitude do testemunho de Jesus: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Quando as trevas, a violência, as injustiças, a mentira e o ódio parecem prevalecer, um pequeno fulgor de luz é suficiente para devassá-los e destruí-los. Será e sempre foi assim. Pois o universo se assenta em amor, harmonia e paz. Nada transcende ao amor, que fermenta a paz, a harmonia, a justiça, o bem e a felicidade. A humanidade tropeça e se desvia do seu sentido ao não entender que tudo emerge do íntimo e do âmago da alma de cada um. Paradoxalmente, a individualidade, quando lastreia sonhos, aspirações, agir e relações no amor, transforma o mundo, devolvendo-o à sua legítima e original destinação.    

Mika Waltari, o mais famoso escritor da Finlândia, ambientou seu romance “O Egípcio” (best-seller internacional) à época do faraó Akhenaton, que adorou a Deus, único e verdadeiro, Criador do Universo. O livro narra a vida de Sinuhe, médico e irmão bastardo do faraó. Curiosamente, muitas das informações constantes do romance, posteriormente, foram confirmadas por arqueólogos e historiadores. Christian Jacq, romancista, arqueólogo e egiptólogo francês, atribui a Akhenaton (séc. XIV antes de Cristo) essa antevisão: “os homens descobrirão um dia que a felicidade reside em partilhar da harmoniosa luz de Deus”. Ao longo dos tempos, a literatura, em suas formas e gêneros de criação, revela um ardil, em função do qual o autor, memorialista, poeta ou romancista, foge do real para criticá-lo, condená-lo e contrapor-lhe uma nova conjuntura ou visão da vida. No século V antes de Cristo, Platão, em “A República”, concebeu sua utopia, consagrando o que ele entendia ser a sociedade ideal. Ao mesmo tempo, condenava os modelos políticos do seu tempo. Desde então, sucedem-se utopias sem fim, que extravasam e projetam novos sonhos e ideais. Mas os escritores também fogem da realidade para revelar suas amarguras, seus questionamentos, suas incertezas e suas perplexidades. Inclusive seu inconformismo e – por que não dizer? –  seu medo. Autores que revolucionaram o romance no século XX, em âmbito universal, expressaram temores e desalentos face circunstâncias continentais ou planetárias, que identificavam ou pressentiam: Franz Kafka, James Joyce, Robert Musil, Hermann Broch, Albert Camus e Gabriel García Márquez. Foram gênios ao mergulhar na alma humana. Suscitaram que, em cada época, de luz ou trevas, o homem comum, universal, defronta-se ante contingências que o estimulam à ascensão ou ao declínio. Estaríamos, agora, em decadência? Ou numa enigmática transição? Quem sabe?

Hermann Broch era austríaco. Perseguido pelo nazismo, foi preso pela Gestapo, que o mandou para o terrível cárcere de Alt-Ausse. Fugiu com a roupa do corpo e os originais de sua obra prima: “A morte de Virgílio”, somente lançada nos Estados Unidos em 1945. O livro proclama a participação de uma alma em todas as formas da presença espiritual do homem. Virgílio (poeta latino, século I antes de Cristo), em suas últimas dezoito horas, contempla sua vida e um mundo que está ruindo. Do mesmo modo que Broch, em 1938, não tem certezas sobre o futuro. Mas se agarra às suas crenças, princípios, opções, sentimentos e ideais. É também a essência de “O homem sem qualidades” de Musil. Eis quando a fuga do real confunde meio e fim. Kafka imergiu na insegurança individual em todos os tempos. O principal personagem de “O processo”, Josef K, bancário, é catapultado do anonimato para a prisão e, por fim, eliminado. Tudo sem saber por que fora preso. O “vilão” é o aparelho judiciário, aviltando-se por seu descompromisso com a justiça, além da “fogueira das vaidades” e das ambições dos seus membros. Desde que o livro foi editado, suas circunstâncias e condicionamentos se repetem. Todos os autoritarismos se nivelam. É o caso, nos nossos dias, da manipulação política e do aviltamento do judiciário na Venezuela. Antônio Houaiss, que traduziu “Ulisses” de Joyce, ressaltava, entre suas características geniais, a de ter contribuído, no século XX, para inovar, ampliar e enriquecer o idioma inglês. Desse modo, Chaucer, Shakespeare e Joyce seriam os maiores expoentes da literatura britânica em todos os tempos. O escritor realiza assim uma espécie de transposição da realidade para a imaginação. Aparentemente foge do real. Mas as coisas, personagens, conteúdo e procedimentos objetivam, invariavelmente, criticar, julgar, projetar ou exaltar essa realidade a partir de valores, posturas e relações predominantes. Mas um escritor francês (argelino), esteta, jornalista, tradutor, editor, herói da Resistência na Segunda Guerra juntamente com Jean-Paul Sartre e André Malraux, concebeu uma obra que superou à própria genialidade, revelada em livros como “O estrangeiro”, “O mito de Sísifo”, “Calígula”: Albert Camus. Enquanto o monumental “A Peste”, escrito no pós-guerra (1947), é um libelo aos autoritarismos, dos fascismos ao stalinismo. Apesar de Camus pertencer ao Partido Comunista Francês. Entretanto Gabriel García Marques, em “Cem Anos de Solidão”, concebeu o maior livro em espanhol desde o “Dom Quixote” de Cervantes. A saga dos Buendia-Iguarán é atemporal e universal. O âmbito de “Macondo” (aldeia) alcança toda a humanidade. Dos sonhos, aspirações e encantos à realidade… Em “Macondo” tudo sucede. É uma obra prima shakespeareana em pleno trópico. Consagra a tese de Cascudo: “será sempre o universal dentro do regional”.

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