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Gaudêncio Torquarto

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Dois pés para o papel correr

A conclusão é inevitável: o Brasil de hoje não anda mais depressa porque o Brasil de ontem não deixa. Querem ver o mais recente dado revelador dessa hipótese? A esperança de vida do brasileiro ao nascer subiu para 73 anos, 10 anos a mais do que a expectativa de vida em 1980. O dado é da última pesquisa do IBGE. Grande avanço. Stephanie dos Santos Teixeira, 12 anos, teve vaselina injetada na veia ao invés de soro e morreu. Tragédia da última semana. Grande atraso. É assim que o passado faz curvas nas largas avenidas do presente. Ao lado de ocorrências trágicas que irrompem sobre os espaços da modernidade, como catástrofes da natureza, multiplicam-se em nossas plagas fatos escabrosos que derivam de fatores humanos, como a incúria, o desleixo, a leniência, escancarando o descompasso entre a progressão geométrica da ciência e da tecnologia (responsável por conquistas na área da saúde) e a progressão aritmética da capacitação humana.

“As faxinas nas cozinhas das administrações públicas dão bons resultados quando constituem prioridades dos governos iniciantes. Não se sustentam no meio ou no final dos mandatos.”

As aberrações atingem o mais alto grau da incredibilidade: uma reforma que consumiu R$ 111 milhões (Palácio do Planalto) e mais de um ano de duração deu com os burros n’água. Nem bem as equipes tomam assento nas instalações renovadas, um cano estoura e joga  lama no subsolo da sede do governo. Serviço mal feito. A falta de refinamento para fazer um restauro de qualidade, no dizer do representante do arquiteto do Palácio, Oscar Niemeyer, diagnostica bem o desmazelo que infesta a coisa pública. Deficiências convivem lado a lado das suficiências. Vejam o caso da Educação, que registra melhora na última década, mas apresenta distância oceânica em relação a países com excelência de qualidade de ensino. Dos 20 mil estudantes que fizeram as provas do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), mais da metade ficou com a nota mais baixa, o nível 1. É consenso: a educação não passa no teste. E não apenas ela. A precariedade dos serviços públicos, por conta do efeito cascata que os estragos geram sobre a economia, atravanca o crescimento nacional.

No momento em que os novos mandatários dão forma às estruturas governativas, com a escolha de nomes para geri-las, o tema da qualidade deveria ser alçado ao posto de prioridade um. A tarefa é complexa, eis que parcela dos novos dirigentes, oriunda da política, encontra dificuldades para conciliar metas de desempenho, definição de responsabilidades, simplificação de processos e redução de cargas burocráticas, com os compromissos e as demandas imediatas dos atores inseridos em sua moldura de interesses. No plano federal, o perfil da presidente eleita permite inferir que as abordagens técnicas, centradas em cânones da moderna administração, deverão ganhar reforço. Aliás, o diferencial da presidente Dilma está em modelagem mais apurada e homogênea de gestão, com a qual poderá implantar sistemas rígidos de controles. Com este escopo, plasmaria identidade e imagem capazes de adquirir respeito e credibilidade, sem querer competir com o ciclo populista de Lula.

O compromisso com a qualidade dos serviços públicos, que se espera também dos governantes estaduais, seria a mola propulsora para a proclamada modernização do Estado. Que caminhos percorrer neste empreendimento? Primeiro, lubrificar a máquina. Melhorar o desempenho. Significa, entre outras tarefas, estabelecer planos de ação para o desenvolvimento das pessoas, dos órgãos e estruturas, adotando critérios meritocráticos nos sistemas de reconhecimento, recompensa e administração de carreiras dentro do serviço público. O Reino Unido, desde 1997, desenvolve uma reforma com o objetivo de expandir a produtividade e a melhoria da qualidade dos serviços. O programa para a redução da burocracia objetiva expandir o PIB do país em 16 bilhões de libras. Na Holanda, programa semelhante se desenvolve, a partir da redução de 25% dos entraves burocráticos do serviço público em um prazo de quatro anos.

As faxinas nas cozinhas das administrações públicas dão bons resultados quando constituem prioridades dos governos iniciantes. Não se sustentam no meio ou no final dos mandatos. Faltaria motivação. Nesse sentido, merece aplausos a sinalização feita pela presidente eleita ao convidar o empresário Jorge Gerdau para comandar um núcleo de gestão no próximo governo. A visão deste empreendedor, voltada para a eficiência, poderá ajudar o Estado a se libertar de elos paternalistas que o prendem ao passado. Nessa tarefa, aliás, o governo dispõe de um grande instrumental: a Secretaria de Assuntos Estratégicos. Sua missão é a de repensar o país. Se há uma tarefa que pode engrandecê-la seria a de criar uma cultura de cidadãos em substituição à cultura de súditos. Em outros termos, implantar uma relação mais simétrica, menos autoritária e paternalista entre usuários e agentes públicos. Ganharíamos, assim, um Estado mais racional, promotor, regulador e gerador de equidade social. E, na esteira desse esforço de modernização, poderíamos apostar na melhor qualidade dos serviços públicos, visualizando-se rapidez em sua distribuição (extinção das malfadadas filas diante de guichês), acessibilidade aos serviços, planilhas transparentes de investimentos e gastos, informações objetivas e fáceis aos usuários, cortesia no atendimento etc.

É evidente que tal aparato exige alentado programa de capacitação, ao lado de políticas de fomento e motivação dos quadros. Só assim seria possível limpar o entulho que se acumula nos espaços da administração pública. Vaselina não seria mais confundida com soro. O zelo tomaria lugar do desleixo. E a seguinte historinha (real) dos papéis que andam entre as instantes dos prédios públicos não passaria de folclore. O cidadão chega à repartição e pede para ver seu processo. Ouve: “ah, tem muitos outros na frente. Vai demorar um tempão até ser despachado. Papel, doutor, não tem pernas”. Agastado, o interlocutor reage: “e quanto o senhor quer para por dois pés nesse papel?” Tiro e queda. O adjutório fez o papel correr rapidinho.

* Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação.

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