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Gaudêncio Torquato: O PNBC do Terceiro Setor

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De tanto o joio florescer no campo do trigo, fica cada vez mais difícil distinguir onde começa a cultura de um e termina o roçado do outro. Faz-se a observação a propósito de entidades sem fins lucrativos que compõem o chamado Terceiro Setor.  Nos últimos tempos, elas passaram a ser vistas também como canais para desviar recursos do Estado e jogá-los nas teias de corrupção que se formam nas malhas administrativas das três instâncias federativas. E assim, sombreado por casos escabrosos, este conglomerado que reúne algumas das organizações mais prestigiadas do país, enfrenta intenso processo de desgaste, cujas consequências poderão afetar o desenvolvimento de programas voltados para o bem estar de comunidades carentes.  Como é sabido, o espaço deste setor é ocupado por associações, movimentos, fundações, entre outras modalidades, que atuam nas áreas da educação, saúde, esporte, lazer, cultura, meio ambiente, ciência e tecnologia, suplementando tarefas e funções que o Estado( Primeiro Setor) não consegue realizar a contento e sem ter como objetivo auferir ganhos financeiros, como é a praxe do mercado(Segundo Setor).

O tamanho da encrenca que põe sob suspeição as Organizações Não Governamentais (ONGs), termo igualmente usado para definir aquele universo, pode ser aferido por esta ordem de grandeza: o país abriga cerca de 350 mil entidades de assistência social, que empregam 2,5 milhões de pessoas e 15 milhões de voluntários; entre 2004 e 2010, esse conglomerado recebeu dos cofres públicos R$ 23,3 bilhões, uma evolução de 180% em 6 anos. Parcela ponderável dessa montanha de recursos entra, de maneira escancarada ou sorrateira, na composição do Produto Nacional Bruto da Corrupção (PNBC), aqui entendido como o somatório das contas da rapinagem e dos  conluios que, por aqui, assumem a forma de licitações “batizadas”, comissões pagas a intermediários, superfaturamento de obras e produtos, emendas em projetos de parlamentares para regiões, e, coroando a engenharia desse poder invisível, convênios com ONGs que semeiam joio. A inferência sobre a ladroagem é plausível. Basta contar os escândalos da atual quadra política e que estão sob a lupa do Tribunal de Contas da União e do Ministério Público.

 Qual a explicação para o fato de que entidades, criadas para trilhar o caminho do  Bem, são levadas a percorrer as veredas do Mal? Primeiro, a cultura da pilantragem, que encontra terreno fértil em nossos trópicos. “Espertocratas” se juntam a burocratas para agir nas entranhas do Estado e tecer a teia da corrupção. Segundo, o parentesco entre instituições privadas com fins públicos e estruturas estatais. As duas bandas fazem convergir seus interesses sob o escopo da Cidadania: são associações desfraldando bandeiras de combate à pobreza, violência, discriminação, poluição, analfabetismo, racismo. Ganham a confiança da sociedade, apoio político e, como não poderia deixar de ser, volumosos recursos. O Terceiro Setor, vale lembrar, constrói sua credibilidade na esteira da crise que, há quatro décadas, corrói os contornos do Welfare State, o Estado de bem estar. Incapaz de prover plenamente as demandas das áreas da educação, saúde, cultura, lazer, entre outras, o Estado passou a ter a colaboração de movimentos da sociedade civil, que acorreram em sua ajuda. A degradação da assistência social se expandiu ao fluxo de outros eventos que impactaram a força do Estado, como a crise do petróleo, nos anos 70, a recessão dos anos 80, a crise global do meio ambiente e a débâcle do socialismo na Europa.

Registre-se, ainda, a entrada em cena de governos conservadores como os de Ronald Reagan, nos EUA, e Margaret Thatcher, na Inglaterra, sob os quais ocorreu acentuado refluxo do Estado na operação do sistema de proteção social. A partir das décadas de 80/90, o Estado passou a repartir com parceiros a execução de serviços sociais básicos. No Brasil, a moldura crítica juntou “a fome com a vontade de comer”. A criação das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, no final dos anos 90, deu força ao Terceiro Setor, agrupando no mesmo espaço as áreas filantrópicas, de caridade, de voluntários, independentes, de cultura e lazer, desenvolvimento educacional de jovens e sua integração ao mercado de trabalho. Certas instituições continuaram a desempenhar sua missão distante dos recursos do Estado, como o Centro de Integração Empresa-Escola, a maior ONG do país, criada há quase meio século, mas a grande maioria estendeu as mãos aos cofres estatais, pedindo ajuda a atores políticos (representantes e partidos), os quais, por sua vez, usam as entidades como aríete para ampliar domínios. Portanto, muitos núcleos do território da intermediação assistencialista de cunho privado, respaldando a competitividade política, passaram a abrigar feudos partidários. Hoje, sua força é capilar, saindo da União, atravessando os Estados e chegando aos municípios.

O que precisa ser feito para limpar o roçado do Terceiro Setor, eliminando o joio do trigo? Expurgar entidades com interesses espúrios ou ligações suspeitas com parceiros alheios a compromissos sociais. Significa investigação acurada em associações privadas que recebem recursos do Estado. Parcerias e convênios com organismos estatais precisam obedecer a regras inflexíveis. Só mesmo por estas plagas é possível alguém criar uma entidade de caráter assistencialista, compor um conjunto de ideias filantrópicas, pleitear  um convênio com um Ministério e conseguir aprovar o pacote com as bênçãos de um político e, posteriormente, aplicar (?) de maneira  atabalhoada os recursos embolsados. O Tribunal de Contas detecta falta de maior clareza e objetividade nos critérios de seleção das entidades beneficiadas. Ora, esse diagnóstico é suficiente para sustar os processos. Mas nada disso gera temor ao Produto Nacional Bruto da Corrupção. Que, a essa altura, já deve ter encontrado boas alternativas para eventuais perdas.  

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