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História para dizer adeus

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EXPERIÊNCIA - Pedrito e George Wilde numa demonstração de amizade

George Wilde – De Luanda (Angola) para a Tribuna do Norte

Quando cheguei em Angola, eu não acreditava tanto em Deus. Eu não acreditava tanto assim no poder da fé. Eu acreditava mais na determinação, na superação e na força de vontade humana. Quando cheguei em Angola, eu não me enxergava tanto assim. Eu não acreditava que pudesse existir um espelho dentro de nós mesmos, responsável por nos dar a imagem de quem realmente somos e o que fazemos diante de todo o nosso pequeno mundo de ilusões.

Vejo-me neste momento com limitações compreensíveis para contar a inesquecível experiência pela qual passei. Tenho certeza de que seria demasiadamente leviano se assim o fizesse. Afinal, como já escreveu o poeta norte-americano Walt Whitman, eu agora sou pura contradição, já que sou multidão. Por isso, diante do meu silêncio escrito e passageiro, transformo os meus mais de 450 dias, vividos e sobrevividos em Luanda, na história de apenas um personagem da vida real. Graças à história de vida dele, eu pude enxergar as cores nos meus dias nublados. Assim como os meus sorrisos foram despertados, apagando os inesgotáveis momentos solitários.

Pedrito muda o cabelo, quase toda semana. Quando ele quer um visual mais retrô, chega abalando com um estiloso blackpower. Dias depois, lá vem ele cheio de tranças e danças, dando um imensurável orgulho à Mãe África. O cabelo dele não é bom. Não é liso, não é de cachorro, como divertidamente falam os angolanos. Mas isso não o impede de mudar. De tentar algo novo, de tentar fazer dele mesmo uma nova pessoa.

Aos 14 anos completados no dia 25 de Agosto e enfrentados dentro de um corpo estreito quase ausente, comparado ao de uma criança brasileira de sete anos de idade, Pedrito é só alegria. Quem o vê assim, brincando com o vídeo-game, não sabe que ali já vive uma linda história de fé, música, coragem, amor e sorte.

Quando Pedrito nasceu, Angola estava em guerra. Na província do Bié, o exército da UNITA, liderado pelo general Jonas Savimbi, controlava quase todo o território. O MPLA tinha pouco acesso ali. No meio do mato, Pedrito quase não ouvia o som das balas que amputavam os sonhos e calavam eternamente os filhos da guerra. Sempre ao lado do seu tio, ele acordava ainda de madrugada e saia em busca de madeira: a matéria-prima para a fabricação de facas e pequenos machados.

Nas manhãs de domingo, Pedrito frequentava a igreja. Mas não eram as missas dominicais que o faziam subir aos céus. A grande paixão dele estava bem ao lado do altar, onde jazia o cálice. Calado ninguém ficava, quando a banda da igreja tocava. Tocava divinamente. E toda vez que os sons da viola de três cordas na sua alma ecoavam, os olhos de Pedrito brilhavam.

As mãos habilidosas que davam vida aos acordes eram as do tio. Com receio de desafiná-la, o mais velho não permitia que o sobrinho ensaiasse as primeiras notas na viola. Assim como nas músicas sacras ouvidas naquelas manhãs, a vontade de ter e aprender a tocar o mágico instrumento musical reverberava forte no pequeno grande coração de Pedrito.

Decidido e sozinho, o garoto partiu em busca da sua própria viola. Numa madrugada fria, mesmo sem ter força suficiente nos braços, Pedrito começou a cortar o tronco de uma árvore. Lá estava a semente do que seria o fruto do seu sonho. Depois de uma semana, com um pedaço de carvão na mão, ele já desenhava na madeira cortada e crua a sua sonhada viola. Um mês mais tarde, as curvas estavam definidas. Faltavam as cordas.

Como era impossível encontrar algo no mato que substituísse as cordas, Pedrito e o seu tio foram à cidade. Foram a pé. Voltaram a pé. Da bicicleta, o sonho de consumo do tio e do sobrinho, trouxeram apenas os freios. Os três pedaços de ferro improvisariam as três cordas da primeira viola de Pedrito.

Foi assim que aquela criança começou a fazer sucesso. Ainda não pela sua música, mas pela sua determinação. Todos nas redondezas queriam saber como, miraculosamente, Pedrito tinha sido capaz de produzir um instrumento musical. E o mais impressionante: sozinho. Não demorou para que surgissem as primeiras encomendas de outras violas.

As mãos cansadas do pequeno artesão não foram capazes de talhar a sua verdadeira vocação. As idas à igreja agora serviam também de estímulo para o aprendizado musical. Em pouco tempo, lá estava Pedrito no coral da paróquia. Assim como numa sinfonia de Bach, a fé e a música apaixonaram-se perdidamente. O encontro entre as duas era sagrado e tinha dia marcado: sempre aos domingos.

Porém, foi numa sexta-feira chuvosa que Pedrito ouviu falar pela primeira vez sobre um novo mundo. Um mundo bem diferente do qual ele vivia. Um tio distante estava de passagem pelo Bié. Naquele dia, nem a chuva foi capaz de apagar o brilho dos olhos do miúdo, que escutava atentamente as mais fascinantes histórias sobre uma cidade grande. Uma cidade com nome de dama. Uma cidade chamada Luanda.

Ir longe era tudo o que Pedrito queria. Agora, com os novos caminhos da vida à frente, ele olhou pra trás e acenou para a mãe com cara de adeus. A despedida marcou o encontro entre as lágrimas e as gotas da chuva, frias e constantes. Como recordações, o menino do calção azul desbotado deixava a viola produzida com tanta determinação, superação e força de vontade. Das certezas, levou apenas a volta para um dia buscá-la. E assim Pedrito foi embora do mato. Foi embora da província do Bié. E assim teve início uma nova história na vida daquela criança. Uma história cheia de capítulos escritos pela razão e emoção. Escritos, acima de tudo, com a coragem, amor e sorte. (Continua).

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