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Holanda

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Surpreendido e feliz ao saber que Chico Buarque de Holanda foi premiado com a honraria do prêmio Camões de Literatura. Nunca pela qualidade e talento do artista e escritor que tem uma trajetória produtiva fecunda e linear. Uma linha de tempo textual que atravessa sua atuação desde a Canção dos Olhos, Marcha para Um dia de Sol – respectivamente primeira composição e a primeira gravação – aos festivais de música popular brasileira, a militância artística e intelectual. Chico até os dias de hoje se colocou numa Caravana de navego coerente dentro do espectro da sua vida-obra. Felizmente os fãs não ditam seus caminhos.  Autonomia total nas criações é a marca d’água. Ele é mesmo o grande circo místico de linguagens. Não há estorvo que o faça ser concessivo.

Fez incursões em crônicas, romances, poesias, novelas, teatro, cinema. Quando comecei a ler o “Leite Derramado” me incomodou sobremaneira aquela narrativa tensa aonde a sequência de fatos acontece simultaneamente. Subvertendo a ordem cronológica de acontecimentos e impactando a fala surpreendentemente o receptor o texto se desenvolve em alta velocidade. Ora projeta memória, ou o presente ou um futuro. Tudo em sobreposição. Roda viva de personagens e evocação de fatos. Justaposição num descarrilar frenético.

O preconceito linguístico ocidental de separar texto e música ou vice-versa está em queda, em curso canônico. Depois da Grécia com Homero e Safo,  da França com Arnaut Daniel e Bertran de Born impondo para a história universal literária a poética cantada… O Prêmio Nobel de Literatura concedido para Bob Dylan e a mais recente atitude do Prêmio Camões legitimando Chico Buarque, o primeiro músico ganhador na sua história parece óbvio que o preconceito ruiu. A escolha dos jurados apontou para o conjunto da obra e a “contribuição cultural para diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”. Dos jurados dos quais o filósofo e poeta Antonio Cícero fazia parte partiram  assertivas justificadoras  dizendo por exemplo que “é indiscutível que um poema como Construção, que trabalha com proparoxítonas rimadas, é um negócio extraordinário. É das coisas mais difíceis de fazer em língua portuguesa”.

Fato é que as duas das mais importantes premiações institucionais conservadoras, que discutem a literatura numa perspectiva do cânone, se abrem para a assimilação do que há anos já batia em suas pomposas portas. A quebra de paradigmas estanques ignorando a reoperacionalização das linguagens e seus suportes. Ezra Pound  sacou e sacudiu o século passado produzindo e alertando essa perspectiva. No Brasil os poetas concretos  foram pragmáticos desde o final dos anos de 1950. Enfim,  antes tarde do nunca.

O poemúsica de Buarque “O que será (  À flor da pele )” interpretado em parceria com Milton Nascimento é de uma tensão lírica e social abrangente e potencial. Há um equilíbrio no discurso crítico que não descamba para o panfletarismo político lugar-comum. Ou jargão desgastado de incitação populista. Ele trabalha no limiar da linguagem naquilo que ela pode trazer ao máximo de mensagem implícita. A poeticidade se mantêm em pontos de provocações reflexivas sugerindo a partir dela própria a ação. O pensamento indaga sobre: “…O que será que vive na ideia desses amantes / Que cantam os poetas mais delirantes / Que juram os profetas embriagados / Que está na romaria dos mutilados / Que está na fantasia dos infelizes / Que está no dia a dia das meretrizes”. Esse o poeta na linha de frente carregando a mais alta voltagem estética sem abrir mão de vírus, da inoculação do verbo pensar!

  As transgressões imagéticas permitem viver a história e retroceder à ancestralidade sem se perder em ornamentos desprezíveis. A amarração de literariedade não se perde com exclusividade semiótica aonde a signagem plástica arde e é presente. O aspecto social plasma e a sacanagem de exclusão aparece bem dimensionada. Veja o que pulsa no poemúsica “Caravela” em mares revoltos: “Com negros torsos nus deixam em polvorosa / A gente ordeira e virtuosa que apela / Pra polícia despachar de volta / O populacho pra favela / Ou pra Benguela, ou pra Guiné”…

O mais é ficar em estado de guerra e de graça. Esse tempo brasileiro…

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