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Identidade perdida?

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN
Gabriel García Marquez, em vários dos seus livros (romances e contos),
evocou as impressões e sensações suscitadas pelo verão em seus
personagens. Eis quando a ficção celebra incomparável e típica fusão com
a realidade. A indolência parece exibir de forma contundente, nessa
circunstância, múltiplas variáveis: apatia, negligência, desleixo,
ociosidade, inércia e preguiça. Mas, em todas as literaturas e épocas, a
ambiência do calor e da estiagem geram condicionamentos peculiares
entre as pessoas. William Shakespeare, em “Muito barulho por nada” e “O
sonho de uma noite de verão” transformou a estação em personagem
principal, ou seja, a circunstância do enredo. Também Anatole France,
Ernest Hemingway, Albert Camus, Mark Twain, Somerset Maugham, Jack
London, William Faulkner, John Steinbeck e, até, Tenessee Williams, em
suas peças teatrais “sufocantes” e estressantes. No Brasil, nem se fala.
O verão é cenário determinante em livros de Jorge Amado, Érico
Veríssimo, Lima Barreto, Graça Aranha, Monteiro Lobato, Graciliano
Ramos, Rachel de Queiroz e muitos e muitos outros. As reflexões a seguir
emergem nessa ambiência do verão. O pensar se submete ao curso
modorrento, vagaroso e arrastado. Pretende-se que as ponderações,
decorrentes dessa imersão no atual processo cultural do Brasil, mesmo
imperfeitas e incompletas, perfunctórias, frágeis, contribuam,
modestamente, para uma autocrítica de quem as lê. Predomina a máxima de
Ortega y Gasset: “eu sou eu e a minha circunstância”.

A saudade é
e não é permanente. Sempre pensei que esse sentimento fosse
invariavelmente eterno. Insusceptível de fim ou esquecimento. O curso da
vida implica em experiências acumuladas ou inovadoras, percepções
novas, que desabrocham como as flores, brotando de minúsculos botões de
pétalas enrolados pela natureza. Tudo torna o viver uma espiral
imprevisível e enigmática. Sinto-me, de algum tempo para cá, como uma
espécie de pássaro fora do ninho. Não identifico a alma desse tempo.
Estarei deslocado? Não se trata de juízo de valor. Julgar o que nos
rodeia como melhor ou pior, bom ou ruim, feliz ou desgraçado? Minha fé
cristã não acolhe esse tipo de julgamento. A História é o fluir da
presença de Deus entre os homens. Por mais injustificáveis e
contraditórias as ações e construções humanas. Mas o bem prevalecerá
sempre. Basta um homem verdadeiramente amar para testemunhar o amor de
Deus e se inserir no infinito.

Fernando Sabino, inesquecível,
genuíno em estilo e visão de vida, dizia que a crônica “é um comentário
leve e breve sobre algum fato do cotidiano”. Antônio Maria, genial,
também da mesma geração, irônico, disse, nos idos de cinquenta, que a
crônica tem a duração de menos de um dia, e a página, na qual for
publicada seria usada, no dia seguinte, como embrulho “para enrolar
peixe”. Desde os tempos de Machado de Assis, José de Alencar, Olavo
Bilac, Lima Barreto e João do Rio, a crônica é uma rica, fecunda e
fabulosa criação literária brasileira. O grotesco, o ridículo, o
burlesco, o satírico e o pitoresco, fatos aparentemente insignificantes,
avultam-se na crônica. Retratam vínculo com variadas, complexas e
surpreendentes exteriorizações da condição humana. Cascudo, outro grande
cronista, estabeleceu uma espécie de “ponte”,  “transição” entre João
do Rio e os cronistas da geração de 40, que alargaram as fronteiras e
limites desse gênero: Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos,
Antônio Maria, Hélio Pellegrino, Rachel de Queiroz, Otto Lara Rezende
e  Nelson Rodrigues. As “Actas Diurnas” revelaram a universalidade da
maneira de viver, agir, pensar, querer e sonhar do provinciano
natalense. Cotidiano local, regional, mas também universal. Por isso
Cascudo, mais tarde, em uma de suas obras-primas, “Civilização e
Cultura”, sentenciou: “será sempre o universal dentro do regional”. Sem
dúvida alguma.

Há personagens singulares e expressivos de um
tempo. Assim, o Conselheiro Acácio e Dâmaso foram excepcionais
referências de Portugal, imortalizados por Eça de Queiroz. Machado de
Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego conceberam
figuras ainda expressivas paisagem humana brasileira. Porém Balzac, na
“Comédia Humana”, é inigualável. Criou quase quinze mil personagens. Por
isso, se alguém quiser conhecer a França e os franceses, basta ler
Balzac. Ninguém o superou.

Não se questiona o declínio espiritual
e moral do Brasil. Não examinemos  causas, origens e motivos. Não é
esse o momento. Mas o verão e a releitura de crônicas, sobretudo as de
Antônio Maria, estimulam questionar o personagem atemporal, símbolo 
emblemático em redes sociais e na televisão. É medíocre, mesquinho,
oportunista, solerte, falso, interesseiro, invejoso, desleal, ingrato,
desonesto e pusilânime? Não encara ninguém de frente, olho a olho?
Debocha de quem sabe? Sua vida e sucessos consagram esperteza e
“jeitinho”? Sua fé é falsa e farisaica, exibicionista e leviana? Suas
atitudes revelam ambições, vaidades, volúpias e indiferença com
sofrimentos e desventuras alheios? A zombaria só lhe causa irrisão
quando outros são sujeitos ao ridículo e ao escárnio? Seus “valores” são
cotidianamente realimentados por sua fonte exclusiva de “cultura”:
televisão e redes sociais? Mutila-se a língua e a linguagem?
Solidariedade, partilha, caridade e fraternidade inexistem em seu viver?
O Ter é o ânimo de suas ações? Sua visão de vida repudia objetivos de
uma sociedade pacífica, justa, solidária e verdadeiramente humana? Eis
uma incógnita para o nosso futuro. Eis o rebento da televisão e da
internet no Brasil. Parece ser, na percepção do inglês George Orwell, um
macunaímico “1984”. Será? Haja esperança…

O mundo está em
crise. É o óbvio. Mas a tragédia brasileira enfeixa, parafraseando o
inesquecível Stanislaw “Ponte Preta”, monumental e irrefreável surto de
besteiras, fanatismos e boçalidades.. Enquanto reinar a ignorância,
marchamos para trás…

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