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Intextualidade

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A literatura potiguar foi referendada por Alfredo Bosi, Afrânio Coutinho, Mário de Andrade e por ensaístas de calibres consideráveis. Mas a iniciativa de Moacy Cirne no sentido de construir visibilidade no plano nacional para alguns autores locais foi marcante. No livro de ensaios Vanguarda: um projeto semiológico (1975), publicado pela Editora Vozes, bem distribuído pelo país, abordando temas ligados ao experimentalismo artístico, à produção de quadrinhos e à vanguarda  (anti)literária, ele seleciona poetas norte-rio-grandenses e desenvolve sumularmente referências e relações apontadas para a poética de rupturas. Nomes compondo um escrete importante da cultura literária potiguar são referendados no estudo, entre eles figuram: Antônio Pinto de Medeiros, José Gonçalves de Medeiros, Homero Homem, Miguel Cirilo, José Bezerra Gomes, Frederico Marcos, Marcos Silva, Anchieta Fernandes… (esses três últimos ligados ao Poema-Processo).

Os textos locais citados foram postos num determinado grau de importância que de alguma maneira dá-lhes inserção ao universo literário no qual se inscrevem Ferreira Gullar, Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto, Oswald de Andrade, Augusto de Campos… Entende Moacy que as produções desses poetas locais “… merecem figurar em qualquer antologia do poemário brasileiro”. Uma antologia de invenção no sentido poundiano da poética brasileira não deveria prescindir dos resultados desses aportes.

    Torna-se evidente o interesse no descentramento da produção literária analisada constatando-se a não peculiaridade de escolas que por ventura estivessem ligadas. Determinados por fatores de origem histórica, de ordem política e econômica, certa região geográfica pode exercer imperialismo cultural interno, tentando colonizar também culturalmente as demais. Nesta ordem de fatores, ponto pacífico é a localização hegemônica da produção criativa e crítica no sul/suldeste do país. No desdobrar da Poesia Concreta, o Poema-Processo e em particular as postulações teóricas de Moacy Cirne convergem para reagir contra essa centralidade estabelecida. A plêiade potiguar e nordestina (Paraíba, Pernambuco, Bahia,,,) bem como de outros estados e regiões – Santa Catarina, Mato Grosso, Brasília, Minas Gerais, Rio de Janeiro – presentes no livro é relativamente numerosa, considerando o trajeto intelectual limitante autoimposto no ensaio: “Da Poesia Concreta ao Poema-Processo e algumas implicações remetidas ao modernismo iniciado em 1922. Daí autores incluídos fora de ordem cronológica mas dentro do espectro linguístico-construtivo.

Se focarmos, no plano local até o ano de 1975, a ausência da crítica literária não sistematizada e por óbvia consequência não praticada é no mínimo pertinente a pretensão de Cirne. À exceção de Câmara Cascudo, que conseguiu pela primeira vez, no Rio Grande do Norte, em 1921, exercitar a crítica literária nos ensaios do seu livro Alma Patrícia, e afora situações menos específicas da crítica propriamente literária, registradas nas antologias e resenhas de revistas, observar-se longo intervalo sem sistematizações ou publicações de obras do gênero. Seriam aproximadamente, quarenta anos de lacuna crítico-teórica sobre a produção local, observada pelo próprio Moacy Cirne ao relatar as origens do movimento por ele liderado no Rio Grande do Norte: “Até quase 1960 o romantismo, vivencial e existencial, impregnava a nossa vida literária. Em 1966 deu-se a ruptura. Insatisfeitos com o verso, com o provincianismo e o compadrismo dos elogios mútuos, com as angústias curtidas nos bares, alguns jovens poetas e mais Nei Leandro de Castro, resolveram estudar a fundo a teoria e a prática da Poesia Concreta. Estava preparado o campo para um salto qualitativo de maior envergadura: esse salto se verificou em dezembro de 1967, quando o Poema-Processo seria lançado ao mesmo tempo em Natal e no Rio de Janeiro.”

Nesse sentido, é preciso dizer que Cirne estava, juntamente com seus companheiros de articulação, estudando a literatura local na perspectiva sincro-diacrônica, visando o sistema literário brasileiro como define Antonio Candido, se reportando a literatura empenhada! Mas, às margens do subjetivismo reinante na província e do respectivo desaparelhamento teórico, estava tentando, em bases nutridas nas ciências de linguagens, lançar luzes sobre a produção poemática referida. Subjacente às teorizações de bases fundantes do movimento parado taticamente em 1972, estava a preocupação qualitativa em analisar a literariedade da produção potiguar.

Assim, mesmo passível de provocar polêmicas e questionamentos, a incursão de Cirne remete a ponto importante: a produção crítica no plano local e pode-se dizer pós-cascudiana. A sua colaboração acontece, sobretudo, no ato de selecionar poesias e poemas inaugurais. Procura na leitura sincrônica – conceituação linguística de Roman Jakobson – da poética local a possibilidade, por qualificação, de inserção na história da literatura brasileira e internacional. Faz-se necessário ressaltar, neste último caso, a participação de alguns integrantes do Poema-Processo do Rio Grande do Norte em exposições e publicações estrangeiras como a revista portuguesa Hydra, ligada ao poeta e ensaísta de vanguarda Ernesto Manuel de Mello e Castro. Ali pode-se encontrar o poema-design Decomposição do Nu, de Nei Leandro de Castro. O autor de OLHO, Anchieta Fernandes, participaria em Buenos Aires de uma mostra de poesia visual, para ficarmos restritos só nesses dois exemplos.

Nesse momento o acervo de Moacy Cirne sob os cuidados da família está sendo catalogado por sua filha Isadora, biblioteconomista, no Rio de Janeiro. Creio que haverá de ter muito à revelar na representação dos estimados dois mil livros, de prováveis anotações, objetos, etc.  Sei que muitas correspondências importantes foram extraviadas pois me confessou de certa feita sua despretensiosa prática arquivística. Não era organizado para tanto, dizia.  Drummond, Ledo Ivo, Haroldo de Campos escreveram em algum momento para o autor de Cinema Pax. Quem sabe se não aparecerá manuscritos sobre literatura potiguar ensejada pelo pensamento lúcido e embasado na radicalidade cirneana?

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