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Lembrando Djalma Marinho (II)

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Sanderson Negreiros [escritor]

Djalma não se realizava somente como “causeur” admirável, capaz de buscar as citações mais precisas para os assuntos mais prosaicos, mas dele crescia uma vertical projeção do homem moral, que guardava muitas dúvidas, mas era singularmente limpo, límpido e bom. De uma bondade que não tinha o ar enfermiço da acomodação gratuita. Mas bondade militante que, se não era de muito se doar, era de muito provocar essa vocação ignorada: ser e conduzir bondade, sem adjetivos.

Ouvi-o horas inteiras, de uma tarde de inverno natalense, diante do mar, revelando trechos inesquecíveis de sua existência, os encontros marcados e desmarcados, e suas três maiores admirações de homem público: Oswaldo Aranha, Carlos Lacerda e Santiago Dantas. Sem esquecer Milton Campos, por quem tinha, não admiração, mas devoção.

Como sabia recordar, recriar, em aquarelas inimagináveis, trechos e situações vistas e vividas! Recordava a última vez, por exemplo, em que Santiago Dantas, já avassalado pela morte, participava de uma reunião, na Comissão de Justiça, da Câmara de Deputados. Djalma fazia parte da famosa banda de música da UDN. E, naquela reunião histórica, estava presente toda a cúpula udenista: Bilac Pinto, Aliomar Baleeiro, Pedro Aleixo, e ele, Djalma. Na outra ponta da mesa, fincado como um velho carvalho prestes a tombar, serenamente como Sócrates, estava Santiago. Sozinho, discutia com todo o outro lado. Djalma visualizava Santiago, tossindo muito, a voz já muito rouca, um rictus de dor inegável no rosto já percebido pelas sombras, mas estoicamente falando – Sócrates instruindo seus discípulos – argumentando, com seu imenso talento cartesiano, insuperável contra toda banda de música udenista, e vencendo-a, e convencendo, ainda tossindo muito, a voz múrmura, os olhos embaciados, mas a voz capaz de levantar um timbre de genialidade incontida: tudo isso na defesa de um projeto do governo Goulart. Terminada, e vitoriosa a discussão, Djalma vai deixar Santiago no carro. Chovia a chuva forte de Brasília. E Djalma disse adeus definitivo ao extraordinário tribuno, que daí, a poucos dias, morria, antes exigindo que só morreria bem, se colocassem diante dele uma marinha, um belo quadro azul, de Dufy.

Mas quantos momentos milionários de surpresa encantatória, de virtualidade consagrada em prosa e verso, na vida pública de quem foi sempre um modelo de homem de província! Nunca a glória, em Djalma, lhe arrebatou a paciência de ser simples. Defeitos? Sim; no máximo tinha a virtude dos pequenos defeitos. Pois seu coração amava sempre o mar largo, as enseadas gloriosas, os amanheceres palpitantes, a tumultuária fração do tempo que nos dá lições de eternidade.

A frase que lhe acompanhou os últimos anos de vida, como uma legenda de antigo cruzado – “ao rei tudo, menos a honra” – que fizera dele um símbolo de uma noite que durou vinte anos, foi apanhada em um drama de Calderón de La Barca. O que demonstrava sua competência em guardar, na multidão das leituras humanistas, a frase certa e oportuna, não de efeito, mas que encerra o princípio e o fim da sabedoria.

Aos 70 anos se foi, depois de poder repetir como o poeta latino: Hic Troia Fuit. Aqui Tróia foi. Vira e revira o sol nascer e morrer sobre sua cabeça, que agora se encontrava frágil, encandecida; e o corpo magro, caniço pensante. Perdera várias batalhas, mas não conseguira perder a guerra. Em seus últimos dias falava como se estivesse certo do destino apressado que o conduziria para outras dimensões, para a contemplação do Absoluto; do Eterno de que ele tanto me falou com amor, espanto e solidão. Era a contraparte que ele deveria resgatar, não depois da morte, porque a morte só existe para os que realmente não souberam viver; ou enjoaram a vida, e nela não acrescentaram sequer o nome de homem. De ser humano, vivo e enriquecido. Flamejante como era ele. Djalma Aranha Marinho.

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