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Lembrando Dorian

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Sanderson Negreiros – Escritor

Nesta noite populosa, como sabem ser as noites do Tirol, afeitas à generosidade dos afetos e à alegria das amizades, vejo entrar, não eu, um amigo humilde, conquistado pelo silêncio das horas, mas um vulto magnânimo e magnífico; de uma figura humana que, para meus olhos, foi a mais impressionante e simpática que vi, quando ele estava no mundo dos vivos – ou menos vivos do que se imagina -, mas que, para Dorian Jorge Freire, foi um pai espiritual. Ele, que era um sorriso que santificava qualquer constrangimento ou indecisão; uma palavra derramada de mística compreensão diante do mistério da vida e de Deus. É a figura de Alceu de Amoroso Lima, o Dr. Alceu, que não podia faltar entre nós, na consagração acadêmica do grande jornalista, do ensaísta inesquecível, que se era um León Bloy escrevendo com a pena de Ernest Hello – como reafirmou o Dr. Alceu -, foi e é também um Chesterton nativo, ao ensaiar, como memorialista, páginas inesquecíveis do que viveu, quase traduzindo um estado permanente de exílio, capaz de transfigurar essa realidade quotidiana numa página de eternidade. Como a de Dona Belisária lendo a “Toutinegra do Moinho”.

Dorian Jorge Freire, eu o conheci em Natal, no final dos anos 60, aqui apontando depois das seguidas e conseguidas vitórias na imprensa paulista, até chegar ao topo de sua experiência combativa e corajosa, que quase se torna também seu Getsemâne, que foi o seminário “Brasil Urgente”, fechado pelo golpe de 64. Aqui, em Natal, com família e sua inseparável Maria Cândida, busca empregos. As portas, naquela época, não eram só as do desemprego, mas as da maldição também. Até que, com Woden Madruga, acolhendo-o, é fundada uma agência de publicidade, de que me fiz secretário. Mas a propaganda não era nossa ambição. E fugimos para a redação do jornal, o ancoradouro de quando quase todas as mãos se fecharam em gesto de medo. No caso, a redação do “Diário de Natal”. E isso dá romance. Aliás, foi o que Dorian, um dia, no encerramento de mais uma edição do jornal, presos que estávamos à obrigação de fazê-lo em três horas apenas, ele subiu numa cadeira e sentenciou, bem alto: “Isso aqui dá romance”. Só que nem ele nem eu escrevemos o romance de tantas figuras e episódios inesquecíveis: tipos humanos milionários de surpresas e tópicos do que resumimos, na velocidade requerida pelo instante, que poderiam ser estendidos à vocação larga de escritor.

Pude, então, me aproximar desse ser existencial, marcado na época por significativa conversão ao catolicismo, com valores diferenciais absolutos, unido a momentos de silêncio, onde nada dele se arrancava de confissão, mas, também, capaz de ensinar através de sua rica experiência, profissional e cultural, vivida e enriquecida em São Paulo, que todos nós aprendíamos, com olhos de gratidão que, de minha parte, passados mais de 40 anos, ainda sinto falta desse diálogo, quando Léon Bloy, Péguy, Jacques e Raíssa Maritain, todos os grandes convertidos que Raíssa reuniu no livro “As Grandes Amizades”. Lembro-me do dia que ele chegou na redação e me confidenciou: “Estou lendo as memórias de Raíssa. Ela, uma santa e grande poeta, chorava”. E Jacques Maritain, o que fazia? – perguntei: “Ficava em silêncio”.

Foi quando Dorian entrou em contacto e se tornou irmão – o irmão de Padre de Charles Foulcaud, como eu dizia -, de uma pessoa excepcional, porque diferente, que vivia em trânsito nesta terra de homens tristes e inquietos. Essa pessoa era Berilo Wanderley. Costuma-se muito dizer que por trás de todo grande homem, sempre existe uma grande mulher. No caso de Dorian, existem várias. Não é somente uma, Maria Cândida, porque ela é tão múltipla, tão nobre, que forma várias Marias em uma só candura. A mulher forte do Livro Sagrado, solidária, generosa, paciente, de tantas bondades, que Berilo, certa vez, perguntou a Dorian: “Onde você foi encontrar uma mulher com tantas virtudes, incluindo uma, que é rara entre as mulheres: fala pouco?”

Outro irmão espiritual de Dorian: Jaime Hipólito Dantas, que já se foi para a Outra Margem, e não mereceu ainda o nome sequer de uma praça ou rua em Mossoró. Jaime me confessava: “Dorian leva muitas vantagens. É magrinho, come muito pouco, dorme menos ainda e lê muito”. E, pelo que testemunhei: não conheci ninguém com maior capacidade de leitura. Quanto maiores forem os problemas se avultando, mais cresce nele a gana de ler.

Agora, quando ele chega de Mossoró e atravessa esses limites, visíveis e invisíveis, que dizem ser os da imortalidade, a gente sente, vê e percebe quanta força circula neste corpo que, se ocupa um pequeno espaço no mundo físico, tem o tamanho da cajarana que ele viu ser plantada, quando tinha doze anos, no quintal de sua casa – que, hoje, enfrentando ausência e verões sertanejos, continua lá, gloriosa e sempiterna. Árvore que foi plantada por sua mãe, Maria Dolores e fincada sob o olhar austero do seu pai, Jorge Freire de Andrade.

Hoje, ele recebe a consagração de Natal, responsável por seus primeiros alumbramentos. Veio estudar aqui nos anos 40. Viu e andou de bonde; extasiou-se com quintais formosos e profundos, de mangueiras e fruteiras gordas e fartas; contemplou as dunas com uma vegetação única no mundo, onde cabem sonhos, sonos e imaginação. Conheceu Antonio Pinto de Medeiros – o enfant terrible, inesquecível. Só existem três Maria da Saudade no mundo: a primeira, ainda viva nos seus 80 anos, mulher do grande poeta Murilo Mendes. A segunda, filha de Antonio Pinto, médica; e a terceira, filha de Dorian. E talvez tenha sido sua segunda filha, Raíssa, a primeira com esse nome no Brasil. Ah, Raíssa de Maritain, que tantos nos espantou, porque era santa e chorava com as dores do mundo!

Dorian: aqui, você chegou tendo à frente o que hoje para nós é uma glória permanente, a figura de Vingt-un Rosado, com dona América, com João Batista Cascudo Rodrigues, com todos seus filhos e amigos de Mossoró – amigos planterários. Mas tenho a obrigação e o dever, a certeza e a convicção, de convocar, sobretudo, a bênção apostolar e protonatária do Dr. Alceu, no seu ingresso nesta Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, acompanhado das presenças de Maria Dolores e Jorge Freire, de Berilo Wanderley, o velho capiau – como ele o chamava; de Jaime Hipólito Dantas e de Frei Carlos Josafá, de quem não podia me esquecer – além do que vai e surge e ressurge de alegria e contentamento, de todo os que se fizeram, ao longo do seu caminho, discípulos de Emaús; de você que, diariamente, recebe a visita do nosso Mestre Maior na eucaristia. E, em estado de graça, diz, baixinho, que só Maria Cândida ouve: “Obrigado, Senhor”.

PS – A Academia de Letras prestou homenagem, terça-feira passada, à memória do grande jornalista. Hoje, seria seu aniversário. Daí, publico esta saudação que lhe fiz na sua posse na citada Academia. (SN).

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