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Literatura reformista

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Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

Já defendi neste espaço, algumas vezes, o estudo do direito por intermédio da literatura (leia-se, aqui, ficcional). E dei várias razões para tanto. Uma delas é o papel que a literatura pode ter na reforma – para melhor, claro – do direito. Embora não seja papel dela explicar ou mesmo reformar o direito (ou qualquer outro conhecimento humano), sua contribuição nesse sentido, sobretudo a partir de interfaces com a antropologia e a sociologia, é inegável.

Como lembram André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que faz parte do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008), “a literatura constitui uma espécie de repositório privilegiado através do qual se inferem informações e subsídios capazes de contribuir diretamente na compreensão das relações humanas que compõem o meio social, isto é, o caldo de cultura no qual, ao fim e ao cabo, opera o direito”. A literatura ficcional, portanto, muito nos auxilia na compreensão do direito e de seus fenômenos.   

Some-se a isso o fato de que a literatura ficcional geralmente apresenta uma visão crítica do direito, desprovida ou para além das amarras de um legalismo que, muitas vezes, embaça a visão e tolhe a liberdade do jurista de profissão. A análise do direito por intermédio da ficção nos permite o descobrimento de outros dos seus sentidos, em regra bem mais próximos de um ideal de Justiça.

Assim, a literatura ficcional, ao mesmo tempo em que reproduz (além da concepção particular de seu autor) o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas jusfilosóficas (tanto as ideias como as escolas), também influencia, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá com outras interfaces da literatura (com a religião, com os costumes, com a moda etc.), ela (a literatura) é subversiva, tanto para a filosofia do direito como para o direito positivo de dado país.

Diz-se haver sido Charles Dickens (1812-1870), com seus maravilhosos romances, um dos grandes reformadores do direito do seu tempo, marcado pelas mazelas dos primeiros anos da Revolução Industrial. Mas não foi o autor de “Oliver Twist” (1837) e “Great Expectations” (1961) que militou nesse sentido. Muitas personagens de romances foram críticos do direito em vigor. William P. MacNeil (no livro “Novel Judgements: Legal Theory as Fiction”, editora Routledge, 2012), levando em consideração a literatura em língua inglesa do século XIX, aponta algumas dessas personagens em Elizaberth Bennet (de “Pride and Prejudice”), Rebecca of York (“Ivanhoe”), Frankenstein’s Monster (“Frankenstein”), Esther Summerson (“Bleak House”), Joe Gargery (“Great Expectations”), Sidney Carton (“A Tale of Two Cities”) e Holgrave (“The House of the Seven Gables”).

Vou dar aqui mais dois exemplos precisos do que estou falando, desta vez tirados de um livro que, coincidentemente, estou lendo por estes dias, “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea” (edição da WMF Martins Fontes, 2014), de Antonio Padoa Schioppa: “Um primeiro setor de inovações legislativas diz respeito à família. Na França, a Restauração havia abolido o divórcio admitido no Código Napoleônico. A crescente consciência das consequências não raro dramáticas, sobretudo para a mulher, de uniões irremediavelmente viciadas – uma consciência exaltada com muita eficácia também pela literatura: pense-se em Madame Bovary de Flaubert ou em Anna Karenina de Tolstoi – levou em 1884, após longas batalhas parlamentares e de opinião, à reintrodução do divórcio na França, limitado contudo a poucas causas específicas (rapto, estupro, sevícias, condenação penal) e com a exclusão do consentimento mútuo como causa de dissolução do vínculo. Ainda na França, muito gradualmente se impôs também a proteção da mulher: à esposa é reconhecida uma pequena capacidade de agir, bem como o usufruto de uma parcela dos bens do cônjuge falecido, a mulher separada foi subtraída ao poder marital, concedeu-se à mulher trabalhadora a possibilidade de dispor livremente de seu salário”.

Como já disse certa vez, não é assim de causar espanto que esses “críticos” – autores e personagens – tenham antecipado boa parte das modernas teorias e tendências do direito (tais como o feminismo, a ética jurídica, o biodireito etc.). De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, historicamente encontraram sua mais vívida expressão nesse popular e imaginativo meio de expressão, denominado por nós de romance, mas que, poeticamente, o mesmo William P. MacNeil chamou certa vez de “lex populi” (na obra “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture”, Stanford University Press, 2007). Se isso seu deu nos tempos de Dickens, de Gustave Flaubert (1821-1880) e de Leon Tolstói (1828-1910), também se dá no nosso. Podem confiar no que eu escrevo. 

Por fim, dito tudo isso, vou agora esquecer o direito e as suas reformas. Vou até deixar de lado a tal “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”. E vou xeretar os meus exemplares de “Madame Bovary” (da Abril Cultural, 1971) e de “Ana Karênina” (da Nova Cultural, em dois volumes, 1995). Para o fim de semana, parece muito mais agradável.

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