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Liturgia: poesia do sagrado

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João Medeiros Filho
Padre

A liturgia proclama ritualmente o amor de Deus pelos seus filhos. É poesia e arte. E esta, em toda a sua dimensão e extensão, tem a força de revelar aquilo que muitas vezes a palavra não consegue expressar. Segundo alguns historiadores, Leonardo da Vinci teria afirmado: “A arte diz o indizível, exprime o inexprimível e traduz o intraduzível”. A poesia – enquanto ato criador de arte em sua forma acabada – poderá parecer mais objetiva do que a própria realidade, pois consegue expressar algo, que de algum modo encontra-se oculto. É clássica a frase de Saint-Exupéry: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.

Uma alma poética auxilia na compreensão simbólica da fé. Ajuda a percorrer os significados que se pretendem revelar, libertando-os de uma visão limitada, que salta avidamente aos olhos. E uma vez livre, o homem poderá perceber melhor a textura e a tonalidade de sua comunicação com Deus. Isso se dá privilegiadamente na linguagem litúrgica, cujo conteúdo evoca o Mistério que não pode ser contido nas palavras. Tal linguagem traz em si uma forma poética expressiva, rítmica, possuindo uma cadência peculiar. Tem-se o exemplo do “Sanctus” no prefácio da missa. Ali, a repetição da palavra santo faz entender que a realidade de Deus, a quem se dirige, escapa a qualquer descrição verbal. O teólogo Romano Guardini referiu-se a essa oração como “a forma suprema com que a criatura fala a Deus e não pode dizer outra coisa senão declarando-o santo”. Também T.S. Eliot, em “Quatro Quartetos”, proclama que “nossas palavras transportam a carga do significado em nossa fala das coisas divinas e infinitas”.

Como a poesia, a liturgia está impregnada de metáforas. Este tipo de linguagem – que se vale de figuras ou imagens para dizer como as coisas se constituem – é plena de amor, ternura e encanto. Assim, como no verso de Camões (“Amor é fogo que arde sem se ver”), é possível dizer que a Palavra de Deus anunciada na liturgia é fogo que arde nas pessoas, como experimentaram os discípulos de Emaús: “Não estava ardendo o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho”? (Lc 24, 32). Por meio de sua expressão metafórica, a liturgia, plena de poesia, revela a grandeza latente de Deus. Quem possui maior sensibilidade compreende e vivencia melhor as alegorias litúrgicas. Isto explica porque Jesus falava frequentemente em parábolas e usava metáforas. No sacramento do batismo, vê-se em primeiro plano a água derramada na cabeça do batizando. Mas, a fé presente naquele gesto afirma que ele está sendo mergulhado em Cristo a fim de renascer (cf. Rm 6, 4). “É necessário nascer de novo” (Jo 3, 3). Assim, a linguagem poética da liturgia é como uma lente que ajuda a ver uma verdade mais profunda e abscôndita: aquela da graça libertadora de Deus! Fernando Pessoa afirmava que “O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, e o fim da arte superior é libertar”. E sendo a liturgia, de acordo com os teólogos, uma das artes mais elevadas (tendo o próprio Deus como artista) ela liberta, colocando ao alcance de todos a salvação oferecida por Cristo.

Se a vocação da poesia é manifestar o que a palavra, por vezes, não chega a exprimir, assim será também com a liturgia. O Concílio Vaticano II ensina: “Entre as mais nobres atividades do espírito humano estão as artes. Elas tendem a exprimir a infinita beleza de Deus”. (Sacrossantum Concilium, 122). É preciso sintonizar os ouvidos à voz da poesia para saber o que ela pode dizer. Ela martela a matéria incandescente do amor em sua forja artística, apara as indesejáveis arestas da condição humana e modela as percepções do mundo. Elizabeth Jennings escreveu: “A poesia deve mudar o mundo e fazer com que ele pareça novo”.  No plano da fé, a liturgia tem a missão de fazer o universo mais parecido com o Reino de Deus, onde cada um possa chegar a afirmar, como São Paulino de Nola: “Para mim a única arte é a fé, e Cristo a minha verdadeira poesia”!

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