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Livro traz provas do monitoramento a Dom Nivaldo Monte na ditadura

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Mariana Ceci
Repórter

A expressão popular “dar murro em ponta de faca” é autoexplicativa: ao efetuar essa ação, é impossível não sair machucado. É por isso que, nos anos de chumbo da Ditadura Militar, o Arcebispo de Natal Dom Nivaldo Monte optava por parodiá-la: mudando o sentido original, Dom Nivaldo preferia dar “murro em faca de ponta”. Assim, dizia o Arcebispo, conseguia desviar de sua direção o objeto cortante. A expressão define bem a postura de Dom Nivaldo durante o período. Com jogo de cintura, conseguiu garantir a manutenção de atividades de cunho social da Igreja Católica em um momento de acirramento de tensão entre as alas consideradas “progressistas” da Igreja e a Ditadura. Foi por isso que o jornalista baiano Biaggio Talento escolheu a expressão como título de seu mais recente livro, “Murro em Faca de Ponta”, que traz provas de que o Arcebispo de Natal, como tantos outros no Brasil durante o período, era mais um dos monitorados pela ditadura militar.

Dom Nivaldo nasceu em Natal, em 1918. Foi professor de disciplinas que iam do Grego à Psicologia, tinha experiência em jornalismo e comunicação. Foi a favor do golpe militar diante da “ameaça comunista” em 1964, mas nem isso foi suficiente para impedir que fosse monitorado de perto pelos agentes da ditadura.
Em 80 páginas, o autor Biaggio Talento relata como Dom Nivaldo passou a ser vigiado na ditadura

Em 80 páginas, o autor Biaggio Talento relata como Dom Nivaldo passou a ser vigiado, graças a arquivos que vieram à público com a promulgação da Lei de Acesso à Informação, em 2011. De acordo com os documentos obtidos pelo autor, é possível afirmar que Dom Nivaldo foi monitorado de meados dos anos 1970 até, pelo menos, 1985, ou seja, o monitoramento seguiu mesmo após o fim oficial da ditadura.

Ao todo, o livro demorou dois anos para ser concluído, entre pesquisa e redação. O interesse de Biaggio na biografia do Arcebispo é pessoal: sua esposa, Helenita Monte de Holanda, era sobrinha-neta de Dom Nivaldo. Teve, então, oportunidade de conhecer de perto o Arcebispo e conversar com ele sobre o período antes de seu falecimento, em 2006. “O que me chamou atenção em Dom Nivaldo é que o jogo de cintura fazia parte de sua personalidade. Ele sempre calculava como suas ações iam impactar nos projetos, nos demais membros da Igreja e na própria Igreja. Por isso, nunca dizia ou fazia nada por impulso, sem pensar”, conta Biaggio.

De acordo com o autor, o objetivo do livro é trazer um recorte do confronto entre a Igreja e o regime militar, “um fragmento de uma situação geral e que nos permite entender como as coisas aconteciam naquele período”, explica.

Apesar de ter começado como favorável ao regime, a visão do Arcebispo se transformou à medida em que percebeu que aquilo não se tratava de um governo transitório, mas sim da instauração de uma ditadura violenta e sem data para acabar. O mesmo aconteceu com diversos setores da Igreja Católica, que percebeu, inclusive, não estar imune às violências do novo governo. E essa mudança de pensamento não passou despercebida aos militares: de repente, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se transformara em uma pedra no sapato do regime.

Uma “rádio perigosa”

O período pré-ditadura militar foi de efervescência para a educação norte-riograndense. Em 1960, segundo o censo do IBGE, a capital potiguar tinha cerca de 154 mil habitantes, dos quais 30 mil (19,4%) eram analfabetos. A proporção de analfabetos em relação ao total da população ia crescendo à medida em que se entrava mais para o interior do Estado. Por isso, pipocavam iniciativas que buscavam reverter esse quadro.

Dentre elas, duas se destacaram: “As 40 horas de Angicos”, que consistiu na aplicação do método do educador Paulo Freire para alfabetização de adultos em 40 horas, no município de Angicos, e as Escolas Radiofônicas, que se transformaram no pontapé para a criação do Movimento de Educação de Base (MEB). A segunda experiência foi comandada pela Igreja Católica, que importou o modelo observado na Colômbia por Dom Eugênio Sales, bispo auxiliar de Natal à época.

Através das emissoras da Igreja, adultos acompanhavam aulas via rádio e tentavam aprender as primeiras letras em salas de aula improvisadas e muitas vezes sem a estrutura adequada. Além de ofertar conteúdo, as emissoras também serviam de espaço para conscientização política, com mensagens ressaltando a importância do voto e da ação cidadã. Essas duas últimas partes desagradavam particularmente o regime.
Arcebispo Dom Nivaldo Monte bebendo leite na fazenda Serra Branca

No Pedido de Busca nº 036/19/AC/76, revelado por Biaggio em seu livro, os militares expressam ambivalência em relação ao religioso, classificando-o hora como conservador e apoiador do Governo, ora como integrante da “ala progressista” da Igreja Católica. “Demonstra indefinição ideológica, confundindo-se com os “Conservadores e Progressistas””, diz o documento.

As homilias transmitidas na rádio também eram fonte constante de preocupação. No dossiê, consta que “a Fundação Paz na Terra”, de Natal/RN, é a entidade matenedoura de uma cadeia de emissoras localizadas em Natal, Mossoró e Caicó/RN, que vem fazendo pregação política entre as massas trabalhadoras da região”. Mas não é só isso: o documento classificado como “confidencial” afirma que “através das Emissoras de Educação Rural são divulgadas mensagens, reuniões, sendo algumas vezes concitada a luta armada, como aconteceu na emissora de Mossoró/RN”.

O corpo de redatores da rádio, que tem os nomes listados no dossiê, incluindo o arcebispo Dom Nivaldo Monte, que presidia a rede, foi classificado como “pessoas comprometidas com movimentos contestatórios, alguns militantes do PCdoB e líderes políticos de oposição e membros da Fedaração dos Trabalhadores na Agricultura”. Foi o suficiente para transformar a emissora que educava pobres em “uma rádio perigosa”.

Regime militar via sinais de ‘subversão’
Ser presidente de uma rádio na qual mensagens sobre a importância do voto consciente e da democracia eram veiculadas não foi a única coisa apontada pelos militares como subersiva no comportamento de Dom Nivaldo. Até mesmo o fato dele ter recebido 50 cartões de Natal da Anistia Internacional, orgão que combate e denuncia a tortura pelo mundo, para que o Arcebispo pudesse distribuir entre os destinatários de sua preferência, foi digno de nota para o Regime.

Além disso, Dom Nivaldo enviou dois telegramas em solidariedade aos ataques sofridos pelo Bispo de Nova Iguaçu, dom Adriano Hypólito, sequestrado, espancado e humilhado por adeptos ao regime que o classificavam como “comunista”. Dom Hypólito teve o corpo coberto de tinta spray vermelha, foi espancado e também teve a sede de sua igreja atacada.

Nos telegramas, Dom Nivaldo se solidariza com o colega em nome de toda a Igreja de Natal, e repudia os atos de violência contra o bispo. Todas as movimentações eram acompanhadas de perto pelo regime, que enviava adeptos para gravar as homilias de Dom Nivaldo. De acordo com Biaggio, apesar de não saber da existência do dossiê, ele percebia ser espionado e seguido pela cidade.

“Operação Igreja”

Diante do peso da Igreja e do número cada vez maior de religiosos que se posicionava contra o regime, a ditadura deu início a uma nova empreitada: a produção de notícias falsas a fim de tentar difamar os religiosos. A ação consistia em enviar correspondência de leitores fictícios para jornais de Salvador e Aracaju, que criticavam religiosos progressistas e elogiavam conservadores que apoiaram o regime.

Desde aquela época, aponta Biaggio, o Governo já funcionava como uma máquina produtora e disseminadora de informações falsas, aquilo que, hoje, chamamos de “fake news”.

Os documentos que revelavam a operação foram levados ao Aquivo Público Nacional do Rio de Janeiro, e levantados pelo historiador Grimaldo Zachariadhes. Em um formulário do SNI denominado “Encaminhamento 08/320/ASV/80”, de 22 de dezembro de 1980, há o detalhamento dos objetivos da “Operação Igreja”: “enfraquecer as alas progressistas de ambas as igrejas [Católica e Protestante]; Conscientizar o povo do mal que vem causando o trabalho de revanchismo social, em detrimento da pregação do Evangelho, mormente por parte de religiosos de nacionalidade alienígena”.

Em outubro de 1982, já com a Operação em atividade, o Sistema Nacional de Informações chegava à conclusão de que era sim possível utilizar a imprensa a favor do governo – através de mentiras.

Dom Nivaldo Monte em Ponta Negra com membros da Ação Católica
As cartas falsas produzidas por agentes do SNI eram datilografadas e, para conservar o ar de autenticidade, levavam uma assinatura em punho do leitor fictício. Uma delas, assinada por um leitor imaginário chamado Epifânio Araújo, ele denuncia um padre do bairro da Boca do Rio, de Salvador, que teria transformado a igreja em uma discoteca, onde havia pessoas com “seios à vista”. Outros, criticam ainda a Ação Católica, chamando-a de melancia: verde por fora, vermelha por dentro.

Quando estava em Roma, Dom Nivaldo chegou a ser abordado por um repórter do jornal italiano La Republica, que lhe disse que pessoas da Polícia Federal brasileira lhe pediram para investigar questões relacionadas ao Arcebispo que, em seu diário, revela Biaggio, considerou o episódio “um desaforo daqueles tolos”.

O livro

O livro “Murro em faca de ponta” está disponível para compra no formato de ebook, através do site da Amazon Brasil. O autor, Biaggio Talento, é baiano e vive em Natal. É autor também dos livros “A Surcusal – Os 30 anos do Estadão na Bahia” (2003), “Basílicas e capelinhas – um estudo sobre a história, arquitetura e arte de 42 igrejas de Salvador” (2006), ambos em parceria com a esposa Helnita Monte de Hollanda, “Edison Carneiro – o mestre antigo” (2009), em parceria com Luiz Couceiro, e “”A Economia da Salvação – uma história da domesticação da morte em Salvador por mercadores de escravos e usurários” (2013), premiado com a Medalha de Prata na categoria “ensaios” no Concurso Literário Internacional da União Brasileira dos Escritores.

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