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Loucura e Arte e Vida

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Lívio Oliveira
Advogado público e poeta

Escrevo este texto observando, esmiuçando, esquadrinhando mesmo uma foto postada nas redes sociais por algum – tanto quanto eu – saudosista da Natal dos anos setenta, década em que iniciei meus primeiros passos e anos de vida alimentando esperanças nem sempre compatíveis com a realidade que vem se estampando ao longo de parte dos séculos XX e XXI, pedaço de tempo que me tem como testemunha ocular e sentimental.

É uma imagem da Praia dos Artistas lotada de jovens com os corpos seminus sob o sol – banhistas se lambuzando da luz do astro-rei e de uma época cheia de ingenuidades românticas e sonhos de paz e amor. Percebe-se fácil na película rústica e colorida, a doce agonia que caracteriza os dias natalenses, em face das mentes fraturadas e tostadas pelo calor que incendeia tudo. E alguma alegria, alguma sensualidade e intenso jogo sedutor, que por aqui é muitas vezes indiscreto e direto, ainda mais numa época como aquela, em que o desbunde vinha das partes baixas do país e se irradiava por estes trópicos mais elevados geograficamente. E vibrava, atiçado, atiçando, como uma Janis Joplin importada e sua ardência roqueira e picantes trejeitos, que agora têm seu revival no belo e poético “Janis: Little Girl Blue”, filme homônimo de lindíssima canção (Rodgers & Hart) gravada pelo ícone feminino norte-americano e mundial.

Recorro ao “Almanaque Anos 70”, publicado na Ediouro por Ana Maria Bahiana. A nostalgia me invade. E eu era só uma criança. Porém, lembro. E como lembro! Como a própria Ana destaca, são “lembranças e curiosidades de uma década muito doida”. Uma doidice criativa, artística, produtiva, idílica, lírica. Lúdicas loucuras, certamente para se fugir da carga terrível e do clima cinzento que se instalara com a ditadura. Havia estilo, mesmo que fosse exagero de estilo. Havia modismos bizarros e alegres modismos, que contaminavam de magia o universo jovem e enchiam de preocupações e reprovações os mais conservadores. Havia a sagrada fé e a escritura dos artistas loucos, que também pintavam, entalhavam, esculpiam, encenavam, cantavam, tocavam, trocavam os lugares antes acertadinhos de tudo – das “pessoas na sala de jantar” –, com as mãos talvez ingênuas dos que não tinham tempo a perder e que se mantinham em busca da construção de utopias.

Essa loucura criativa eu também vi e gostei, há poucos dias, assistindo ao novo filme sobre a trajetória da famosa e ousada psiquiatra brasileira Nise da Silveira, interlocutora de Carl Jung e criadora do “Museu de Imagens do Inconsciente”. O filme se chama “O Coração da Loucura”. Merece mesmo ser visto e apreciado. Sobre ele e sobre o que trata, vale refletir. No Brasil, a loucura é pra lá de estigmatizada. Falta amor para se dedicar aos loucos. Nenhuma balada se toca mais. Só há mundo para os “saudáveis” e suas quadradices. Pouco se quer perceber sobre a profundidade criativa que nela, na loucura, há. E o que se tem é o desperdício de vidas e de talentos neste país. Que país injusto e desigual estamos “construindo”?! Um país para os “sãos”, esses que não são para o mundo do espírito e do sentimento?! Pra quê? Pra nada?! Viva a arte! Viva a arte e sua folia!

Observando mais detidamente a cena da foto, percebo uma jovem linda, com grossas e macias coxas e longos cabelos negros, pensativa e mirando a avenida através dos seus grandes óculos escuros, sentada (flor-de-lótus) na mala traseira de um Ford Corcel. Onde estará hoje? O que terá feito com os seus sonhos e paixões e olhares difusos?

Ainda bem que me apaixonei, desde criança, desde os 70’s, pelo mundo dos artistas e dos loucos. Não dá pra viver só num mundo. Não dá pra viver só. Num mundo em que emergem os Trump’s e outros impostores reacionários, bom que nos mantenhamos unidos. Loucos de todo o mundo e de todos os gêneros, artistas e poetas, os vivos e os mortos, unamo-nos! (e vou tentando lembrar os nomes dos loucos do Barro Vermelho daquela época, muitos, muitos). Unamo-nos, antes que o mundo seja entregue às insanidades mais hipócritas, desprezíveis e vis, quase sempre advindas da má política e do mau e despudorado poder, sem desbunde, sem loucura, sem amor na vida.

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