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Machado de Assis simplificado

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Ivan Maciel de Andrade                                                                
advogado

Patrícia Secco, autora de livros infantojuvenis, obteve autorização do Ministério da Cultura para captar um milhão de reais, através da lei Rouanet. Com que objetivo? Para aplicar, com ajuda de uma equipe, no projeto de “simplificação” do conto de Machado de Assis “O Alienista”, o primeiro do livro “Papéis avulsos”, publicado em 1882. A edição do conto “simplificado” será de 600 mil exemplares.  Em que consiste a “simplificação”? Explica Patrícia Secco: “Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis. Os livros dele têm cinco ou seis palavras que (os jovens) não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso.” Simplifica ou deforma, adultera, desqualifica?

Uma dessas “simplificações” é exemplificada: “A palavra ‘sagacidade” virou ‘esperteza’”. O dicionário Houaiss define sagacidade como “aptidão para compreender ou aprender por simples indícios”. Esperteza é definida, no mesmo dicionário, entre outras coisas, como “ação desonesta para conseguir algo, tentando ludibriar alguém; ardil, astúcia, malandragem.” Observa João Cezar de Castro Rocha, escrevendo para o jornal “O Estado de S. Paulo”, que esperteza “evoca o célebre jeitinho brasileiro”. E, a seguir, analisa “as quatro ocorrências da palavra sagacidade” no conto de Machado para demonstrar a inadmissibilidade de sua substituição por esperteza: “No primeiro capítulo: ‘Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia’. No capítulo II: ‘Ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência’. No capítulo XII: ‘Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente’. No capítulo XIII: ‘Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância’”. Fica evidente que, no conto, sagacidade não pode ser traduzida por esperteza. Esperta, e muito, foi Patrícia Secco ao captar um milhão de reais.

Propõe, ainda, a “simplificadora” mudanças como “filhos da nobreza” por “filhos de nobres”, “reproche” por “censura”. A primeira mudança me parece ridícula, não merecendo sequer comentário. Quanto à segunda, devo lembrar que o próprio Machado, em nota no final do livro “Papéis avulsos”, reconhece que a palavra “reproche” é desusada, mas justifica o seu emprego dizendo que não a foi buscar “para dar ao estilo um verniz de estranheza”, mas porque “a ideia (que ele pretende expressar) a traz consigo”. Então a mudança, na segunda hipótese, contradiz expressa intenção de Machado.

Nada tenho contra adaptações. A obra de Machado de Assis já foi adaptada para o cinema e até mesmo para quadrinhos. Neste caso, no entanto, procedem as restrições feitas por Noemi Jaffe, professora de literatura brasileira: “Quando você adapta uma obra para adequá-la a um novo gênero, tudo bem. Mas, no caso de ‘O Alienista’, o formato é o mesmo, a linguagem é que foi sequestrada. A literatura não é só conteúdo, é principalmente linguagem.” O estilo de Machado é direto e coloquial. Alterando-o, nada restará do escritor. Indaga o prof. Alcides Villaça da USP: “Apresentar como sendo de Machado de Assis uma mutilação bisonha de seu texto não devia dar cadeia?”. Acho que sim.  

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