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Marcação na zona

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Sanderson Negreiros – escritor

1. Em São Luiz da Barra, havia um time glorioso, chamado Botina Futebol Clube. Já vi o “ônzimo” jogar, como diria Zela dos Inhamuns. Foi esse time quem primeiro empregou no Brasil a marcação por zona, antes mesmo de Zezé Moreira nascer. Isto é: quando se percebia um claro muito grande na defesa – avenida, como se chamava – e a defesa ficava batida e abatida, os irmãos e primos do goleiro entravam em campo para salvá-lo do gol iminente. Isso era em São Luiz da Barra e o esquema tático se chamava “ marcação por zona”. Descoberta que a fez célebre, imemorial. Aliás (em se tratando de futebol sempre há um aliás), o vigário da amena localidade começou a implicar com o termo “marcação por zona”. – Não há um nome melhor? -Perguntava, veemente, levantando os olhos do breviário comido pelas traças. Zona, continuava ele, é meretrício, lupanar, basfond, cangerê. No púlpito sagrado, na missa domingueira, e que era a festa da cidade (toda mulher botava seu vestido novo e o sapato ibidem, idem), ele voltava a argüir: “Meus irmãos, nossa cidade está ficando célebre pelo futebol. Mas com um nome que não soa bem; é contrário aos mandamentos e às regras da religião”… Um vereador, amigo do vigário, e presidente da Congregação Mariana, apresentou na Câmara projeto para que se proibisse o nome que celebrizava, no esporte, a maneira de jogar futebol em São Luiz da Barra. Em vez de marcação por zona, passaria a ser marcação por personalidade. Bigode, o grande ponta de lança do Botina Futebol Clube, ao saber da coisa, explodiu: “Já viu jogador ter personalidade aqui em São Luiz!”. O grande rival do Botina era o Serrinha, da cidade do mesmo nome, vizinhos e convizinhos. A rivalidade era extremada sob  todos os pontos de vista: qual a mulher de perna mais grossa? De Serrinha ou São Luiz?. Quem é mais traído? Quem mais isso ou aquilo? No futebol, era a decisão fatal. O presidente do Serrinha mandou um bilhete para o Botina: “Queremos agora botar para a cucuia o vosso time. Se Vosmecê topar a parada, com toda cambada e molecada restante, nóis vai lá dar uma surra e não vai sobrar nem alma de jogador”.  A resposta veio urgente: “Nós semo homem aqui, debaixo d’água e encima do campo. Nóis não teme valentia de palhaço. Pode juntar a raça toda, pai, filho, avô e bisavô, botar tudo num mesmo saco, que o Botina futebol Clube não teme ameaça e vai ganhar de gol  de revestrés e outras surpresas na marcação por zona”. Dia do jogo. Policia muita. Do Serrote do Papagaio, um bando de cangaceiros, prontos para agir em defesa do Serrinha. Bacamartes mil – gritava Bigode. Na hora de começar a partida, Deus salvou as duas cidades. Houve um tremendo estrondo. Tremeu tudo. As traves se entortaram. O juiz, que já morria de medo com a encenação da guerra iminente, fez carreira.

2. Toda quarta-feira à noite, saíamos da redação direto para o Juvenal Lamartine. Este estádio de que vos falo, tem um significado profundo na formação existencial de gerações natalenses e consuetudinárias. Os domingos à tarde, com a própria tarde fazendo-se temporã e belíssima, em cima dos nativos morros, lá estávamos, no velho estádio, assistindo às grandes batalhas entre América, Alecrim e um time glorioso, inesquecível, belo e misterioso como sua sigla, chamado ABC, que as gerações mais antigas conheceram. Hoje, desapareceu. Procuro e não o encontro. O ABC não era apenas três letras que choram, como está na canção famosa – também velhíssima -, do cantor Chico Alves, abrindo seu programa de meio-dia de domingo, na Rádio Nacional. O ABC é uma legião extraordinária de guerreiros, unidos e renascidos desde a Revolução Francesa. São três letras que choram em elegia, como se estivessem exiladas dos que amaram esse time com a certeza de que ele seria eterno, imortal, perene, impávido, acessível somente à glória.

3.  No Juvenal Lamartine, reinava, por exemplo, Mário Dourado, repórter de campo, entrevistando Preta, fubeque famoso do Sapé Futebol Clube. Era jogo noturno. E  rival era o Alecrim, simpático, com sua legenda verde tão bonita. Mário entrevista Preta: “Como você se sente antes desse jogo?” Depois da pergunta, o paraibano não se conteve e explicou: “Acho que nóis vai perder. Nóis nunca jogamo de noite. Tamos tudo incandiado”. Mário Dourado vira para Miro, centeralfe do Alecrim, e sapeca: “Miro, antes de uma partida tão importante, como está seu sistema nervoso?” Miro fez pose e, catedrático da vida na feira do Alecrim, sentenciou: “Tudo ótimo, porque atualmente não tenho sistema nervoso”. Ao meu lado, estavam Albimar Furtado e Clóvis Santos, o grande fotógrafo. A noite era alimentada pelo frio que descia dos morros e Preta, incandiado mesmo, com as luzes nervosas do majestoso estádio, “furou” uma bola de maneira trágica. Resultou no gol da vitória do Alecrim.

Mas permaneceram para sempre, na memória corrente e decorrente, que levarei pelos séculos afora, com a eloqüência da saudade mais palpitante, os jogos do estádio Juvenal Lamartine. Eu sentia que era feliz, olhando aqueles morros, as dunas misteriosas, uma paisagem sobrevivente de beleza e paixão, coabitada pelo grito de gol; ou por um silêncio construído de tristezas, quando o ABC era abatido em sua majestade, hoje despojada e andrajosa, de quem reinou solitariamente, e deixou o trono vazio para sempre.

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