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Matuto do bom

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Marcius Cortez
escritor

Onde está o escritor Ariano Suassuna? Está vivo em suas obras literárias, aulas-espetáculos, vídeos e entrevistas. Onde está a pessoa Ariano? Está inteirinho nas páginas dos folhetos da literatura de cordel. A última vez que estive com ele, foi na casa de Boris Schnaiderman no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Ariano viajara para a capital paulista a fim de participar do comício de encerramento da campanha de um candidato à Presidência da República, que terminou perdendo as eleições. Zélia veio com ele. Havia percebido que era o mesmo Ariano das reuniões do pessoal do Gráfico Amador que estava ali. (AS sempre que podia, afirmava que seu guru foi José Laurênio de Melo, poeta pernambucano).

Pois bem, no meio da conversa, um aluno de Boris declarou que não acreditava em Deus e pra quê o pistoleta foi falar isso? Ariano incorporou o Auto da Compadecida e gesticulando que nem o cumpádi Grilo e que nem o cumpádi Mazzaropi contou um causo que havia acabado de acontecer com ele. Na tarde do dia anterior fora rezar na Catedral da Sé quando apareceu um homem grandão que se aproximou do altar do Espírito Santo.

O caningado da moléstia falou assim para a Santa Divindade: “se tu existe mesmo me dê uma chapuletada pra eu cair no chão”. Ariano olhou para a esposa, ao seu lado, ”se prepara aí, Zélia”. Mal acabou de falar, o bebum se estatelou no chão. “Tá vendo, vai brincar com Espírito Santo que tu leva uma cacetada no coco!”

Não preciso dizer que a conversa se animara. Depois do sertanejo Ariano contar que o poeta Sebastião Uchoa Leite, presente na reunião, tinha uma tia que nunca tomou água na vida, liberou o papo. Então, vencendo minha timidez, aresolvi debulhar uma do Conde João Alfredo Cortez, meu tio. Introduzi o assunto com uma pergunta: “a gente vê cachorro, gato, galinha, bezerro e até cavalo atropelado pelo meio da estrada, mas por que será que nunca a gente vê bode atropelado”? A questão devia ser muito profunda porque calou um silêncio no ambiente. Boris, Jerusa e Bastião, diga-se de passagem, não deram bolas para essa alta filosofia. Mas Ariano mostrou-se interessado. Então eu desfiz a charada: “o bode é o único animal que quando vai atravessar a rua olha para os dois lados”. O autor do Romance d’A Pedra do Reino não só concordou comigo como desatando o novelo sapecou uma infinidade de histórias de bodes e cabras. Valeu por um doutorado. O ucraniano Boris, tradutor de Dostoievski, Tolstói, Tchekhov e Maiakovski, adorou as bodadas.

Vi Suassuna na Flip em Paraty. Na palestra para os participantes do evento literário e também para a população da cidade graças aos telões instalados nas praças públicas. Devo dizer que a aula-espetáculo continuou no dia seguinte. Na peixaria, o limpador de camarão repetia as histórias que o poeta falara. Na lojinha de material fotográfico, “seu” Oziel, o balconista, disse que ia à biblioteca pegar os livros do escritor. Na padaria, a moça que comprava leite e broas, declarou que também tinha o hábito de prosear com Nossa Senhora. Ora, ora, se isso não for literatura, o que diabo é literatura?

A arte deve estar onde o povo está. Ariano tornara-se uma figura pública porque ele ia de encontro às pessoas, o criador de bodes de Taperoá, Paraíba, prezava o contato direto. Tive o prazer de vê-lo no Marco Zero do Recife, participando de um comício gigantesco. Dra. Cristina Fittipaldi, minha irmã médica, me contara que o escritor perdera um filho e que, portanto, vivia um drama pessoal. Muito bem, esse homem, com toda a dor que sentia naquela hora, estava lá no palanque. Valha-me ó Deus de todos os búzios, aquilo foi uma psicanálise selvagem, foi um tal de chorar e de rir que o mar que fica ali por perto, tremeu.

Ligeirinho, meio inocente, mas malicioso que só a peste, faz que não sabe nada, mas sabe tudo, cê tá indo, ele tá voltando, tinhoso, temente de deus e do diabo, louco pra conversar, parece que tá concordando com você, mas no fim você vê que ele próprio tem a sua opinião, não troca seis por meia dúzia porque sempre gosta de levar uma vantagenzinha e pra moças bonitas é perito em palavras floridas. É o Jeca Tatu, é o Pedro Malazarte, o Chicó, a Maria Bonita, o Corisco, o Antônio Conselheiro, a moça que virou cobra, o cabra que presenciou a chegada de Lampião no inferno, o dono do cine do pavão maravilhoso, o Rei Dom Sebastião, enfim de todos eles, mas também de Ariano Vilar Suassuna, matuto danado de bom. Desse, o Brasil sentirá falta.

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