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Meu companheiro de jornada

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Alex Medeiros

Carlos soares

Durante o quinto ano primário, no verão de 1971, minha geração se submeteu às provas do Exame de Admissão, um pequeno vestibular para acesso ao ginásio. Fiz as provas, confiante, e curti as férias de final de ano na expectativa de trocar de mundos, sair do pequeno Grupo Escolar Felizardo Moura, nas Quintas, e entrar num dos colégios estaduais de reconhecida competência. Quando o ano virou, o resultado foi publicado nos três jornais da cidade.
A lista saiu num domingo e meu pai comprou a edição de O Poti, mas nem ele, nem eu, conseguiu ver meu nome entre os aprovados. Eu não queria crer na reprovação, ciente de ter feito boas provas. Papai foi buscar a Tribuna, mesmo sabendo que a lista era a mesma distribuída pelo governo à imprensa. No entanto, para alegria geral da nação Cleodon, lá estava meu nome, aprovadíssimo, e a indicação da data de apresentação à minha nova escola.

Foi a única parte insatisfatória para mim, que não queria estudar no colégio Padre Miguelinho, por pura pirraça tribal. Mas no dia de se apresentar, fui lá e fiz uma via crucis de porta em porta procurando minha sala, que não aparecia.

Depois que a multidão de adolescentes sumiu nas salas, eu fiquei praticamente só em busca da minha, até que vi uma senhora com uma prancheta e com meu nome numa das páginas. Aí veio a alvíssara: eu iria para o Winston Churchill.

Tomei o ônibus e desci na Rio Branco, praticamente na calçada do trabalho de papai, a quem nem deu tempo avisar da mudança. Atravessei a avenida subi, feliz, os degraus do colégio, acompanhado por outro garoto retardatário.

Nos comunicamos explicando as mesmas situações, ele vinha a pé desde o Atheneu, onde também não queria ficar. Seu anjo da guarda deveria ser do mesmo time do meu, que também bateu as asinhas premeditando a mudança.

No ano anterior em que fizemos as provas, o Nobel de Literatura saiu para Pablo Neruda, autor da frase “eu acreditava que o caminho passava pelo homem e que dali tivesse que sair o destino”. Eu a inverteria por causa daquele encontro.

O garoto nos degraus e que acabou na mesma sala que eu, e depois nas mesmas salas durante o ginásio, e depois na mesma sala do científico, e depois amigo fraterno, e depois parceiro profissional, era Carlos Soares.

Carlos foi meu amigo mais longevo até ontem, 48 anos sem intervalos, que o acaso juntou naquele começo de 1972 e que revirou o dito de Neruda: eu acredito que o homem passa pelo destino e que dali tem que sair o caminho.

Fui testemunha de toda a trajetória do imenso talento de Carlos, desde os quadrinhos em caneta ou lápis, nos roteiros que eu inventava, passando pelos retratos em bico de peno, perfeitos, até tornar-se o artista absoluto que ele foi.

Meu coração disparou no sábado quando meu filho, seu sobrinho, avisou que havia duas ambulâncias na porta da “tia Rose”, o amor que Carlos emoldurou para sempre ao conhecê-lo através de mim. Avisaram que o quadro era grave.

Ontem, na notícia da sua morte, o coração não tinha como disparar, pois já passara os últimos dias no mesmo ritmo do primeiro susto. Desabei na mesa de um shopping, riacho nos olhos e sentindo algo arrebentado por dentro.

Das muitas e muitas coisas feitas juntos, meu pensamento estava naqueles degraus do Churchill, e eu pensava que se a vida me deu irmãos sanguíneos, o destino me deu um irmão de alma, um grandioso companheiro de jornada.

Nos meus delírios estudantis, contei com sua arte para compor folders políticos em off set, uma disparidade com os impressos em mimeógrafos. Arrisquei os primeiros textos críticos fazendo apresentação das suas telas em exposições.

Eu vi, numa tarde pardacenta em São Paulo – na rua México do bairro Brooklin – um célebre cearense abrir o tubo de papelão, desenrolar um trabalho de Carlos sobre a mesa e gritar: “porra, o boy é artista mesmo!”. Era Belchior.

“Um dia vamos dar um banho de arte nessa Pauliceia, eu pintando e tu poetando”, disse ele após os elogios do rapaz latino americano, feliz e sonhando nas ruas longe de casa. Não banhou São Paulo, mas pintou sonhos.

Nós, os cegos diante dos mistérios das cores, não imaginamos a visibilidade de algo tangível ou concreto numa tela do gênero abstrato. Carlos nos fazia ver nossos sonhos, nossos temores, nossos amores, em pinceladas mágicas.

De uma vida pessoal discretíssima, jamais afeito a grandes grupos, de uma timidez toda própria dos gênios, falava tudo por suas telas e por elas estabelecia uma relação íntima com o mundo. Acho que pintou mais que falou.

Meu velho companheiro de jornada era um reflexo no espelho, os defeitos comprometedores da saúde que eu tive, não havia nele. Viveu sem álcool, sem fumo e desde a adolescência criticava minha aversão a exercícios físicos.

Já escrevi outras vezes sobre a relação estreita que tenho com a morte desde a juventude; como mantenho a atenção nas sentenças dela. Cansei do formato em que ela só me tira e não devolve. Em seis meses, me levou três irmãos.

Carlos Soares foi o golpe mais forte, me pegou no contrapé da segurança emocional. Me resta Neruda, o mesmo daquele Nobel do ano das nossas provas de admissão: “vale muito ter lutado e cantado, vale muito ter vivido”.

Agradeço ao destino por ter nos colocado naqueles degraus do colégio. Pode ter sido acaso o encontro, mas não foi acaso que nossa jornada virou uma grande amizade. Vou catar os cacos da dor da saudade e juntar numa moldura de belas lembranças. Tchau, meu irmão. Até a próxima prova.

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