sexta-feira, 19 de abril, 2024
28.1 C
Natal
sexta-feira, 19 de abril, 2024

Mexeram no queijo

- Publicidade -

Tádzio França
Repórter

Colaborou: Cinthia Lopes, editora.

Os queijos artesanais, de coalho e manteiga, são patrimônios nas mesas potiguares há pelo menos três séculos. Uma iguaria ancestral com 350 produtores espalhados pelo interior, mas que raramente chega a muitas mesas. A situação paradoxal se dá por uma questão de legislação, que atualmente exige a pasteurização do leite e da produção, impedindo que o produto artesanal – feito de leite cru – alcance uma clientela maior. O fato faz com que pesquisadores,  chefes, comerciantes e produtores estejam cada vez mais engajados na preservação das tradições, aliada a leis que protejam e orientem os queijeiros. Faz toda a diferença no paladar.

Os queijos de coalho e manteiga do Seridó são reconhecidos até fora do Brasil
Os queijos de coalho e manteiga do Seridó são reconhecidos até fora do Brasil

Cadeia produtiva
A pesquisadora Adriana Lucena encampa essa luta há 13 anos. Ela comemora o fato de o assunto estar finalmente sendo discutido nos meios oficiais. A questão foi assunto em abril na Assembleia Legislativa do RN, reunindo produtores, consultores, técnicos e políticos da região do semi-árido para debater a atual cadeia produtiva do queijo artesanal potiguar. O deputado estadual Hermano Morais (PMDB) é autor do projeto que regulamenta a atividade. Está em tramitação nas comissões legislativas.

Segundo Adriana, em todo Brasil o movimento pelo queijo artesanal tem ido à frente. “Há uma demanda crescente, as pessoas valorizam e pagam caro por isso. Os produtores mineiros são os mais aguerridos e não abriram mão de suas técnicas e receitas em nome de uma normatização que mataria o queijo artesanal. E muitas instituições estão abraçando a causa da proteção da cultura alimentar”, explica.

O leite integral, fresco ou cru é o ingrediente essencial do queijo coalho. Se não for feito assim, a pesquisadora afirma que o produto nem merece esse nome. “Na linha pasteurizada, até temos queijos bons, mas não é a mesma coisa. A maioria dos produtores de queijo coalho passaram a pasteurizar o leite para fazer o queijo dentro das normas e competir no mercado”, diz. Adriana afirma que a legislação é cruel nas normas sanitárias e também no registro de novos queijos. “Os mais criativos não podem registrar pois seus produtos não seguem a fórmula pasteurizada e conhecida. Os cozinheiros são ‘foras da lei’, o que considero um escândalo oficial”, afirma.

‘Aditivos’ no queijo de manteiga
O queijo de manteiga também não escapa das desvirtuações. Muita gente está pondo aditivos que empobrecem o produto, como batata doce, farinha, macarrão, margarina e óleo de soja. “O absurdo é que alguns produtores estão brigando pelo direito de continuar fazendo essa ‘mistura’ horrorosa. E a legislação atual só considera queijo aquilo que é feito a partir de leite, coalho, fermentos lácteos e laticínios”, diz.

Outro item que diferencia, segundo ela, é o compartimento onde se faz o queijo de manteiga: “deve ser no tacho de cobre ou de ferro. Em um de inox, o sabor muda”, detalha. Em agosto do ano passado Adriana levou o cineasta Eugênio Puppo até Caicó para ele registrar a produção original de um queijo de manteiga. Estará num filme sobre o livro “A História da Alimentação no Brasil”, o clássico de Câmara Cascudo. Será lançado ainda este ano. Ela defende mais orientação aos produtores, e também apoio institucional.

Os informais
O engenheiro agrônomo Acácio Brito, gestor no setor de agronegócios do Sebrae, ressalta que o Seridó é o maior centro produtor do Estado, e abriga 311 queijeiros artesanais que vivem numa situação complexa. “É um setor que produz, vende, mas atua na informalidade. Trata-se de um produto histórico, com uma identidade cultural muito arraigada, mas que é clandestino. É absurdo que essa produção não seja reconhecida pela legislação vigente no Rio Grande do Norte”, afirma. 

No RN são 311 queijeiras artesanais, que não conseguem fornecer de forma regular
No RN são 311 queijeiras artesanais, que não conseguem fornecer de forma regular

Acácio acredita que algumas ações coordenadas poderiam resolver facilmente questões sanitárias que permitiriam a produção sem leite pasteurizado. “Precisa haver sensibilidade, pois nem são problemas tão complicados de se resolverem”, diz. Ele ressalta que a nova legislação deve respeitar a pequena produção estadual. “A segurança alimentar se garante com boas práticas desde a ordenha até o cuidado na manipulação”, completa. Os municípios mais produtores são Caicó, São Fernando, Jucurutu, Timbaúba dos Batistas, Jardim de Piranhas, Cruzeta, e Santana dos Matos.

Mercado
A produção informal do queijo artesanal leva os consumidores a procurar bodegas, pequenas padarias, mercadinhos e feiras livres. Os comerciantes maiores se ressentem de não ter o acesso facilitado. A loja Cantinho Sertanejo, 28 anos fazendo a ponte entre o interior e a capital através da comida, adotou os queijos de manteiga e coalho embalados à vácuo. “É um produto regional que sofreu mudanças conforme as exigências, e a gente acompanhou  isso nos últimos 15 anos”, conta a proprietária Lilian Medeiros.

A comerciante sente falta dos queijos frescos que adornavam as vitrines antes dos queijos embalados e congelados. “A produção deixou de ser caseira e ficou mais industrial. Muitos produtores que a gente comerciava há anos não puderam arcar com isso. Claro que nós prezamos a qualidade dos atuais produtores,  mas o sabor é diferente dos antigos. Gostaríamos muito que a legislação se adaptasse aos produtores artesanais e voltássemos aos queijos frescos de antigamente”, afirma.

Mano Targino, proprietário da casa de embutidos e defumados Pata Negra, lembra que na Europa é bastante comum a venda dos queijos artesanais sem embalagem. “No Brasil, não se consegue comprar direito um queijo de um estado para outro. Os nossos produtores ficam pra trás porque não conseguem vender, a produção legal é cara”, comenta. O comerciante chegou a produzir queijo, mas parou após as exigências das legislações, e também às questões do leite e da seca.

Ele não aprecia os queijos embalados à vácuo e congelados. Segundo a experiência de Targino, um bom queijo vai ficando ‘curado’ num ambiente propício e se tornando cada vez mais saboroso. “O que os legisladores deveriam eram refazer seu controle de qualidade, e não dizer ao produtor como fazer”, afirma. Isso também impediria o queijo de manteiga com manteiga, casca de banana e batata que muitos estão fazendo atualmente. 

A pesquisadora Ana Suassuna, prima de Ariano Suassuna que vem ao RN para um simpósio em Pipa, também ressalta a produção artesanal européia. “Se faz com leite cru, e ninguém morreu até hoje, que a gente saiba. O ruim é não ter queijo para comer. Eu aprecio como o RN resiste em manter suas tradições alimentares. É natural. Isso é o que mudará as coisas a favor de vocês”, conclui.

“A legislação atual só considera queijo aquilo que é feito a partir de leite, coalho, fermentos lácteos e laticínios. O leite integral, fresco ou cru é o ingrediente essencial do queijo coalho. Se não for feito assim, a pesquisadora afirma que o produto nem merece esse nome.”
Adriana Lucena – Chef e pesquisadora

“Trata-se de um produto histórico, com uma identidade cultural muito arraigada, mas que é clandestino. É absurdo que essa produção não seja reconhecida pela legislação vigente no Rio Grande do Norte”
Acácio Brito – Engenheiro do setor de agronegócios do Sebrae-Rn

“No Brasil, não se consegue comprar direito um queijo de um estado para outro. Os nossos produtores ficam pra trás porque não conseguem vender, a produção legal é cara”
Mano Targino – Empresário e produtor

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas