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Mirassol e a cidade do conhecimento

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Ramon Ribeiro
Repórter

Por tempo de vivência, talvez desse para o escritor, filósofo e professor Pablo Capistrano assumir uma das salas do Setor II da UFRN por usucapião. Como aluno, ele teve matrícula ativa de 1993 até 2010 – foram três graduações: Psicologia (incompleta), Filosofia e Direito, uma especialização, um mestrado em Metafísica e um doutorado em Literatura. Antes, criança ainda, ele já frequentava a universidade, tinha aulas de pintura no Departamento de Artes e, nos fins de semana, explorava o Campus de bicicleta com a turma de amigos de Mirassol.

A UFRN e seus arredores é um lugar especial na vida do potiguar, autor de livros como “Pequenas Catástrofes” (AS Editores, 2002), “Simples Filosofia” (editora Rocco) e “É Preciso Ter sorte quando se está em guerra” (Jovens Escribas, 2011). Entre indas e vindas, ele morou na região de 1974 (ano em que nasceu) até 2000, primeiro em Mirassol, depois em Cidade Jardim. Hoje ele vive em Nova Parnamirim e lembra com bom humor das suas aventuras de universitário.

“Mirassol era um dos últimos bairros da cidade. A gente vivia já numa fronteira. A sensação era de morar em uma cidade do interior, longe da ‘capital’, que era o centro. E o Campus da UFRN parecia uma cidade fantasma. Era como se você tivesse entrado em uma dimensão paralela”, recorda o escritor sobre suas impressões da infância.

Criado no bairro de Mirassol, Pablo Capistrano começou a frequentar o Campus ainda criança(Foto: Alex Régis)
Criado no bairro de Mirassol, Pablo Capistrano começou a frequentar o Campus ainda criança (Foto: Alex Régis)

Quando Pablo entrou para a universidade, a casa dos pais já era na Cidade Jardim, mas o dia a dia do estudante era entre o Setor II da UFRN, os barzinhos das adjacências, como o “Mariu´s Bar” e o Contra Baixo (este, próximo do Papódromo). A casa dos amigos que compunham o coletivo cultural Sótão 277 também era espaço sagrado para reuniões regadas a vinho, literatura e música.
Essas reuniões resultaram na publicação de zines, produção de recitais de poesia e intervenções artísticas, como a que fizeram na inauguração da Galeria Conviv’Art, do NAC, no Centro de Convivência da UFRN. As memórias são muitas e Pablo as encara com uma serenidade filosófica. “A saudade é o espaço onde a gente se reinventa todo dia”, reflete.

Mirassol de antigamente
Mirassol era um bairro de classe média baixa cujas ruas tem nome de flores. Eu passei a minha primeira infância na rua dos Miosótis, já imaginou isso? Uma rua com nome de flor. Mirassol era um dos últimos bairros da cidade. A gente vivia já numa fronteira. Lembro que a sensação era de morar em uma cidade do interior, longe da “capital” que era o centro. E tinha o viaduto de Ponta Negra. Pra mim, ali era o limite do meu mundo.

A caixa d’água em forma de calça Jeans
Nessa época tinha a grande caixa d´água em forma de calça jeans que ficava onde hoje é o Carrefour, bem lá no alto. No Natal se colocava uma estrela em cima da caixa d’água e a vizinhança saia pra beira da BR-101 pra assistir aquela estrela piscar. Era um acontecimento.

Existência comunitária
Naqueles anos a gente era meio que criado na rua e havia um senso de comunidade entre os vizinhos. Um ajudava ou outro, um cuidava do filho do outro. Uma espécie de noção de existência comunitária que eu penso que anda meio abandonada nesses tempos em que a vida parece uma eterna “patrulha policial”.

Fim do Regime Militar
Na casa de Mirassol tinha muita festa. Naquela época era finzinho de Ditadura Militar e as pessoas tinham o hábito de transformar o ambiente privado em um lugar para expressar o que não podia ser dito às claras. Passei a infância escutando barulho de copos e garrafas, sentindo fumaça de cigarro e de incenso, ouvindo falar de Freud, Marx e Herman Hesse e viajando nas capas dos discos dos meus pais. Clube da Esquina, Big Brother and The Holding Company (com os desenhos do Crumb que me espantavam desde os 7 anos) e os “discos da maçã” como eu chamava a coleção dos Beatles que a minha mãe tinha em casa.

O mundo paralelo da UFRN
Comecei a frequentar a UFRN porque minha madrinha de batismo,  Selma Bezerra, era professora do DEART e a gente sempre participava das oficinas de arte pra crianças no NAC. A partir de 1983 eu comecei a explorar mais o Campus porque aprendi a andar de bicicleta e a turma gostava de rodar por lá nos finais de semana quando não tinha aula. Era uma aventura de exploração. A gente disparava de bicicleta pelos corredores saltando de um setor para outro. O Campus parecia uma cidade fantasma. Era como se você tivesse entrado em uma dimensão paralela. 

Cheiro da liberdade no ar
Era o começo dos anos 1980, o inicio da abertura política, e eu me lembro de ficar espantado com as palavras de ordem ou com as siglas partidárias que eu lia nas paredes. Como havia muitos militantes de esquerda frequentando o meu círculo familiar eu conhecia alguma coisa daquelas siglas e daqueles bordões. Lembro de ter pensado “alguma coisa interessante está acontecendo com esse país”. Mas eu tinha dez pra onze anos e só podia intuir.

O lendário Setor II
O Setor II sempre foi o Setor II, desde que eu me entendo por gente. Mas antes ele era mais bucólico. Era quase um “alternativo rural” (rsrsrs) com direito a muito mato e violão. O prédio do CCHLA era menor, havia mais espaços abertos e menos salas de aula, o que dava a sensação de amplidão e de uma certa quietude, especialmente no fim da tarde quando o vermelho do sol se misturava com a noite que chegava por trás das dunas do parque. E quando tinha lua cheia… cara, dava até pra uivar.

Os barzinhos da época
Tinham alguns pontos clássicos frequentados pelos universitários, especialmente no CCAB Sul. Tinha o antológico Mariu’s Bar e sua fita K7 com as músicas de Zé Ramalho, Alceu Valença e Belchior (a mesma fita, na mesma sequência, toda santa noite). Mas tinham também as festas no DCE, na residência universitária, no bosque em frente ao CCHLA ou mesmo por todo campus quando havia congresso de estudantes. Nesta época (aí já era anos 90, antes do Blackout abrir na Ribeira) os espaços ditos culturais eram muito pontuais e a fauna alternativa se encontrava mais pros lados da Vila de Ponta Negra.

O sótão de Seu Aristeu
O Sótão surgiu na Escola Técnica Federal (hoje IFRN) em 1992, quando eu, Adriano Araújo e José Soares Júnior éramos estudantes do ensino médio e resolvemos fazer um manifesto e botar um sebo improvisado pra arrecadar dinheiro e lançar nossos livros artesanais. Nos reuníamos no sótão da casa de Seu Aristeu (pai de Adriano), em Lagoa Nova, na rua Francisco Ferreira Lima, 277 (daí o nome do grupo). Começamos a fazer fanzines por lá mas como todo mundo migrou pra UFRN a gente meio que levou o Sótão junto.

Sótão na UFRN
Em 1994 a gente foi meio que adotado intelectualmente pela professora Ilza Matias, do Departamento de Letras. Ela nos deu uma chancela acadêmica que a gente não tinha, talvez por parecermos punks demais aos olhos de muita gente do mundinho das letras aqui da província. Ela viu algo no trabalho da gente que apontava pra Deleuze, Derrida, esse povo da pós-modernidade. Daí conseguimos uma bolsa de pesquisa e um acesso privilegiado ao NAC e a um acervo incrível que o poeta Jota Medeiros tinha guardado lá. Era um negócio de louco. Uma coletânea de zines, livros-objeto e poesia visual de todo tipo. Uma espécie de coleção da arte de vanguarda dos anos 60, 70 e 80.

Sótão na Galeria
Ficamos tão empolgados que fizemos um fanzine novo, o “Papai, Estamos Vivos!” e lançamos na galeria do NAC, no dia da inauguração do lugar, com direito a instalação, recital de poesia, exposição de fotografias e show de uma banda cover do NEW ORDER. Tudo em um espaço de uns 50 metros quadrados (a galeria não é onde é hoje, era um espaço menor). Foi uma loucura. Tinha gente se acotovelando na porta pra entrar e o lugar não cabia mais ninguém. Derramamos uns quinze litros de “Sangue de Boi” em umas lonas pretas no chão e o espaço fedia a vinho vagabundo. Até hoje não sei como aquela noite terminou.

Para recuperar as ruas
Acho que o que falta à região da UFRN é o que falta em quase todo canto. Gente na rua. Mais pessoas vivendo embaixo do céu e não trancadas em shoppings, automóveis e condomínios fechados. A gente está perdendo a rua para o medo, e quando a gente perde a rua, a gente perde a cidade também.

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