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Na beira da lagoa

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PERSONAGEM - O pescador Chico Lucas inspirou e ajudou na pesquisa

A sabedoria popular conseguiu pular a cerca que separa do restante do país os minguados 2% da população brasileira habitante das universidades públicas. Sensibilizadas com a vida e os costumes de nove comunidades que sobrevivem às margens da Lagoa do Piató, localizada no Vale do Assu, as professoras do programa de pós-graduação em Educação da UFRN, Maria da Conceição Almeida e Wani Fernandes Pereira, apresentam num livro 20 anos de pesquisa na região.

A obra “Lagoa do Piató – fragmentos de uma história” será lançada na próxima segunda-feira, 26 de junho, a partir das 17h, na livraria da Cooperativa Cultural, no Centro de Convivência da UFRN. Na ocasião, o morador de uma das comunidades, o pescador Luís Justo Filho lança o seu “História de Ontem para Amanhã” com 14 causos da lagoa.  O grupo de Teatro da Comunidade Olho D´água Piató é outra atração do evento.

A pesquisa ganhou uma dimensão inesperada para as autoras. A idéia inicial que vinha sendo tocada na década de 80 era descobrir apenas o potencial da pesca na Lagoa do Piató. Para isso, o estudo contou com o financiamento, por dois anos, do CNPQ e o apoio de uma equipe de biólogos e outra de cientistas sociais.

No entanto, durante as visitas, Conceição e Wani decidiram ampliar a pesquisa mesmo sem recursos. “A universidade ajuda de vez em quando dando um carro e um motorista, mas eu fui muitas vezes no meu. Fomos conhecendo a população e nos comprometemos a repor um pouco da história da lagoa, com a ajuda dos pescadores. Existem casarões com uma riqueza tão grande escondida que decidimos continuar até hoje. E vamos para dormir na casa dos pescadores. Às vezes a prefeitura de Assu dá algum apoio, mas independente disso não deixamos de ir”, disse.         

Indagada sobre o momento em que decidiram tocar o projeto, Conceição Almeida afirmou que deve a pesquisa ao pescador Chico Lucas, 59 anos. Ela recorda que enquanto os biólogos tentavam encontrar diferentes espécies de peixes baseados na profundidade da lagoa, o pescador questionava o método. “Eles (biólogos) tinham uma maneira de coletar as espécies nas partes mais fundas ou na rasoeira. Foi quando Chico Lucas disse que se fosse assim não existia pescador pobre. E através de uma metáfora, falou que `a vida lá embaixo (no fundo da lagoa) é como em cima (superfície). Às vezes a gente se encontra e às vezes não. Tudo depende da incerteza e do acaso´. Fiquei surpresa porque ele estava falando de coisas que nem todos os cientistas prestam atenção. Acabamos mudando o rumo da pesquisa. Hoje ele a coordena comigo”, afirmou.

A sabedoria dos pescadores em relação às condições climáticas, as plantas e o comportamento dos animais é a fonte principal do estudo. Mas detalhes como a educação e a religiosidade católica na região (cada comunidade tem uma escola e uma capela) também estão no livro.

Para as professoras, o desejo, agora, é contribuir para que as histórias cheguem aos mais novos. “Esse livro é também uma forma de ajudar para que a própria história de vida das comunidades cheguem às crianças. E a acho que já estamos conseguindo. A prefeitura de Assu comprou 50 livros para distribuir nas escolas. É o que a gente queria”, afirmou.  

Sumiram os camarões e os caldeirões de cozinhar

Durante os 20 anos de pesquisa na lagoa do Piató, a professora Maria da Conceição Almeida notou uma mudança maior nas condições de pesca e nas relações econômicas da população que sobrevive na região.

Ela lembra que nas primeiras vezes em que esteve nas comunidades, as famílias cozinhavam camarão em grandes caldeirões (como os utilizados nas cozinhas industriais) na beira da lagoa. A falta do crustáceo, no entanto, alterou o costume. “Não existe mais camarão e os caldeirões sumiram. Havia também uns barracões onde o pessoal salgava os peixes, mas também acabou. Agora, cada família em separado, na própria casa, faz o trabalho. E se antes vendia-se peixe para as feiras livres ou até na Paraíba, a barragem Armando Ribeiro Gonçalves ajudou a reduzir esse comércio”, disse.   

Nesse tempo, a pesca passou a dividir os trabalhadores com a construção das barragens e até os postos de combustível de Assu. O êxodo também acabou refletindo na agricultura.    

A professora analisa ainda a economia na lagoa de Piató. Embora diferente da cidade, ela afirma que as relações também foram alteradas. “É um tipo de economia diferente. Tinha época em que eu chegava e havia muito dinheiro. Em outros tempo faltava. Não saberia estimar a média salarial das famílias, mas algumas ainda tem o auxílio dos programas sociais do governo federal como o Bolsa Família. E não existe aquela cultura de guardar dinheiro. Quando está sobrando, compram bicicleta, DVD e telefones celulares. Mas é aquela coisa: se apertar eles vendem tudo”, revela.

“O pesquisador é um excêntrico”

A academia costuma se fechar com seu conhecimento. Esta pesquisa aparece na contramão disso. O pensamento acadêmico está mudando?
Conceição Almeida: Infelizmente, hoje, a ciência é vista como uma monocultura. Todo mundo pensa do mesmo jeito. Acredito que o conhecimento é diverso e essa generalidade é perigosa. O pesquisador é um egocêntrico. Venho fazendo esse trabalho há 20 anos, o professor Luiz Assunção no campo das religiões africanas também avança nesse sentido. Não digo que é uma tendência, mas estamos em sentido oposto.    

A senhora notou alguma má vontade de outros colegas quando decidiu continuar este trabalho?
CA: Não. Essa pesquisa vem tendo uma grande repercussão. Não apenas em Natal, mas em outros lugares. Procuro manter aceso o painel de pensadores na universidade. Na minha sala, por exemplo, ao lado da foto de Edgar Morin, tem a de Chico Lucas.

O que representa para a senhora, professora universitária, a figura de Chico Lucas? CA: Ele é meu guia intelectual. Chico Lucas evita que eu embruteça no mundo das teorias gerais, que eu me perca no labirinto das certezas.

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