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Naquela mesa de bar

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Ramon Ribeiro
Repórter

No finado Bar da Gia, no Alecrim, quando as namoradas estavam na mesa todo mundo fingia que o petisco era de galinha. O mesmo era feito no resistente Bar do Coelho, na Cidade Alta, quando se sabia que as meninas teriam aversão em comer a carne dos bichinhos fofinhos. Até o garçom e o dono entravam na jogada. Aliás, essa relação de compadrio entre o cliente e os funcionários é um dos aspectos que faz do bar um ambiente tão especial, quase a segunda casa da pessoa – e primeira no caso dos boêmios.

O pesquisador Gutemberg Costa não se define como boêmio, mas é fato que é um grande entendido do assunto bar, em especial os bares de Natal


O pesquisador Gutemberg Costa não se define como boêmio, mas é fato
que é um grande entendido do assunto bar, em especial os bares de Natal

Essas histórias do Bar da Gia e do Bar do Coelho quem conta é o escritor, pesquisador e folclorista Gutemberg Costa. Ele não se define como boêmio, mas é fato que é um grande entendido do assunto bar, em especial os bares de Natal. Até porque o cara leva esse assunto à sério. Quer dizer, à sério não né. Na verdade o cara leva como hobby, uma mania incontrolável que o faz registrar em caderninhos os bares que visita. Tudo começou em meados da década de 70, quando tinha por volta dos 17 anos. Sem imaginar, esses caderninhos de anotação ainda serviriam para alguma coisa.

Gutemberg está com um novo livro no prelo. O título é “Breviário etílico, gastronômico e sentimental da Cidade do Natal”. A obra tem como base o tais caderninhos, além de referências bibliográficas, e pesquisa de campo, claro. O lançamento está previsto para o dia 8 de agosto, no Themis Clube Balcão Bar (Tirol). Na ocasião Gutemberg também estará comemorando 60 anos de idade.

Autor de “Antigos Carnavais da Cidade do Natal (1875 a 1945)” e “Natal: Personagens e Populares”, no novo livro Gutemberg conduzirá o leitor por um passeio da Zona Norte à Zona Sul passando por mais de 200 bares e restaurantes da cidade, desde os mais simples até os mais luxuosos, lembrando aqueles que marcaram história e não existem mais, mostrando os espaços recentes com potencial, e ressaltando aqueles estabelecimentos tradicionais, que, à propósito, o escritor gostaria de ver valorizado pelo poder público. “No Rio de Janeiro bar antigo é patrimônio da cidade. Tem inclusive placa da prefeitura”, diz em entrevista à TRIBUNA DO NORTE, concedida no Iate Clube de Natal.

A conversa foi concedida no Iate Clube de Natal, onde o autor participava de uma confraria. Entre uma dose e outra de uísque, Gutemberg lembrou de histórias que presenciou, personagens com quem conviveu e bares que jamais esquecerá de ter frequentado. O papo foi um verdadeiro aperito para o livro.

Caderninhos de anotações
Eu sempre tive mania de anotar tudo em agenda. Ainda tenho. Gosto também de fazer recorte de jornal. Tenho vários anúncios de bares antigos. Tudo isso está no livro. Fotos também tem várias porque eu às vezes levava a máquina. Tudo isso me permitiu escrever sobre os lugares que não existem mais. Dou o endereço dos bares, falo da ambientação, se a comida era caseira, conto a história dos donos, dos garçons. Comecei essas anotações com 17 anos. Já tinha barba na época então conseguia entrar e beber alguma coisa. O livro faz um recorte de tempo que vai de 1975 até 2019. Mas o livro não é só memória não. É pesquisa também.

Alecrim
Fui criado no Alecrim. O bairro tem um dos maiores capítulos do livro. Cito bares, bodegas e restaurantes da região. Mas o mais importante era a Feira do Picado, nas sextas-feiras. Juntava muita gente, aparecia os hippies, tinha serestas à noite. Vinha gente de fora pra cá. As mulheres lá preparavam tudo. Panelada, buchada, mas o principal era sem dúvida o picado. Essa movimentação na Feira se acabou por volta dos anos 80.

Bar é tradição
No Rio de Janeiro os bares antigos tem placa comemorativa da prefeitura. Lá os botecos são patrimônio da cidade. Isso deveria acontecer aqui também. O Bar do Coelho é um que merecia. Tem mais de 50 anos. O Caixinha de Fósforo, na Princesa Isabel, é outro, mais de 40 anos no mesmo lugar. A Peixada da Cumadre, que começou nas Rocas antes de ir pra Praia do Meio, também é um local com mais de 50 anos. O Bar do Perdrinho, tocado hoje pelo filho, Nélio, é outro com mais de 50 anos. O Bar Bate Papo”, na Rio Branco, quase em frente o Sesc, é a mesma coisa. O dono faleceu mas a viúva com os filhos continuam com o bar. Tem o Cobra Choca também, outro tradicional. O Poder Público poderia fazer algo para valorizar esses lugares para quem não desapareçam.

Bar de poeta
Eu só conheci um dono de bar com título de cidadão natalense: Zé Saldanha, o cordelista, lá em Candelária. Seu bar se chamava “Recanto do Seridó”, tinha cerveja, sinuca, queijo, os seus cordéis. Funcionou quase 50 anos.

Morre em Pé
O carioca chama de “pé sujo”, aqui a gente chama de “morre em pé”. É aquele estabelecimento que não tem mesa, só balcão. Um exemplo é o Bar de Nazi, da famosa meladinha. Não existe mais. Seu Nazi passou quase 50 anos só com balcão, sem mesa, só com cerveja e a sua meladinha no cardápio, quase sem tira-gosto, só tinha um caldinho de feijão. Foi a maior freguesia de Natal em sua época. Juízes, escritores, todo mundo ia lá. Era um morre em pé clássico, sem mesa.

O falso boêmio
Jovem, quando tinha saúde, eu não tinha dinheiro pra beber. Depois, quando tive dinheiro, faltou saúde. Mas eu era o falso boêmio. Sempre fui mais de ir em bar para conhecer, comer, bater papo, anotar minhas coisas na agenda, tirar foto. Nunca sai de bar às quedas.

Boêmios Famosos
Cito nesse livro mais de 200 pessoas. Os principais boêmios de cada bar são lembrados. Estão lá Newton Navarro, Luís Tavares, José Alexandre Garcia. Este foi um grande boêmio, pai do Dunga, publicou um livro sobre a Confeitaria Delícia, o bar da Ribeira, do português Seu Olívio. Mas o boêmio, é bom explicar, é o sujeito que é respeitoso, tem amizade com os garções, o dono do bar… não tem nada a ver com biriteiro, aquele que cara chato, que só faz perturbar. O boêmio não, ele chega no bar e o garçom já cumprimenta pelo nome, já sabe o que ele vai beber, conhece o tira gosto.

O dono beberrão
Ali perto da Capitania das Artes tinha o Joanes Bar, do Juarez. Ele despachava uma dose e bebia duas. Quando chegava o fim de tarde já estava sem condições. Uma vez levei dois amigos de Mossoró lá. Na hora que Juarez chega com as cervejas ele caiu no chão, rolou para a calçada, só não foi mais longe porque a gente segurou. Por incrível que pareça as cervejas não quebraram. Juarez era um cara valente. Quando apareceu um assaltante no bar e ele puxou a faca e brigou com o cara. Foram os dois para o Walfredo Gurgel.

O destemido Nazareno
Nazareno era dono de bar nas Rocas. Era homossexual, brigava com deus e o mundo. Era o homem mais valente de Natal. Já entrou em briga contra cinco pessoas. Era alto, quase dois metros de altura, bem forte. Seu bar se chamava Caco de Barro. Ele era cozinheiro, despachava, fazia tudo. Nazareno Barbosa, foi dono de vários bares. Já é falecido, mas cheguei a entrevistá-lo.

Políticos boêmios
Também tínhamos aqueles políticos que gostavam de um barzinho. O Bar Kasarão, na Campos Sales, era uma espécie de bancada da Assembleia Legislativa. Quem comandava era o deputado Márcio Marinho. Quando terminava os trabalhos na Assembleia ele levava todo mundo para o Kasarão. Esse bar fez história.

A tranquilidade faz a boemia
Eu prefiro um ambiente simples, sem burocracia, sem aquela coisa fechada com ar-condicionado. O problema é a violência. Nos 70 e 80 a gente bebia até amanhecer o dia. O dono ficava chorando pra fechar.  E a gente saia todo mundo à pé pra casa, brincando na rua. A tranquilidade era o que permitia a boemia. Ninguém tinha hora pra voltar. Hoje a gente já vê que muita gente prefere beber em casa. É uma pena.

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