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Narrando os fatos

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Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e mestre em Direito pela PUC/SP

Uma das partes essenciais na formatação de uma decisão judicial é a narrativa dos fatos, tanto do caso concreto em si como dos atos do procedimento, narrativa essa que, via de regra, deve preceder a fundamentação propriamente dita.

E é possível relacionar algumas características de uma (boa) narrativa dos fatos (do caso e do processo) para os fins de uma decisão judicial.

Em primeiro lugar, diferentemente da argumentação ou da fundamentação, a narrativa de uma decisão judicial, de forma tanto quanto possível neutra, deve concentrar-se nas personagens e nos fatos do caso e do processo e menos nas ideias. É verdade que alguns juízes são prolixos; outros, lacônicos. Mas, como orientação, recomenda-se aqui, tão somente, uma exposição das personagens do caso, um relato dos fatos envolvidos, a apresentação das questões suscitadas para decisão do juízo e pronto. Qualquer narrativa que tire a atenção das personagens e dos fatos, fazendo digressões argumentativas ou tratando de temas mais genéricos ou periféricos, perde em clareza e em coerência.

Em segundo lugar, deve ser dada toda a atenção possível ao transcurso de tempo para que personagens e fatos sejam apresentados de maneira inteligível. Na verdade, a cronologia tem um papel fundamental na inteligibilidade da narrativa. Como explica Víctor Gabriel Rodríguez (em “Argumentação jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal”, editora Martins Fontes, 2005): “Essas figuras [leia-se personagens e fatos] são apresentadas ao leitor de acordo com uma ordem também característica, qual seja, o transcurso do tempo. Entre uma ação e outra, determinante das alterações operadas pelos personagens, há um lapso temporal, que deve ser indicado para o leitor como eixo principal da coerência narrativa. A indicação do transcurso do tempo é essencial ao discurso narrativo e pode aparecer de modo explícito (como a determinação de data e hora), ou de modo implícito (a referência a um marco histórico ou a própria sequência das ações, que permita ao leitor depreender o passar do tempo etc.)”.

Em terceiro lugar, temos a questão da coerência ou unidade do sentido, sobretudo sob o ponto de vista interno, que é fundamental à narrativa dos fatos em uma decisão judicial. Essa coerência se dá, antes de tudo, pela não-contradição. Por exemplo, se é afirmado que a parte deixou de recorrer, não se pode mais à frente simplesmente aduzir que seu recurso (antes inexistente) é inadmissível. Nesse exemplo, cai-se em contradição, pois na mesma narrativa afirma-se que um evento não existiu e também existiu (embora imperfeito). Víctor Gabriel Rodríguez, na obra acima referida, nos lembra também que um discurso, embora não-contraditório logicamente, pode ainda assim ser incoerente. Basta que, afirma ele, o “interlocutor não encontre unidade de sentido. Se digo que em determinado caso o réu agira em estado de necessidade porque não gostava de andar armado, o ouvinte acha incoerente meu discurso, porque não observa relação direta entre não andar armado e estar em estado de necessidade”.

Por derradeiro, vai uma constatação: dentro de uma visão formalista, a narrativa dos fatos deve ter um conteúdo meramente informativo, sem potencialidade argumentativa, já que serviria primordialmente para esclarecer as circunstâncias fáticas do caso em julgamento e os incidentes da dinâmica processual; entretanto, esse conteúdo informativo nunca é puro, no sentido de destituído de potencialidade argumentativa, até porque a própria determinação, pelo juiz, de quais são e como são os fatos do caso acrescenta inúmeras variáveis a sua decisão (e é importante lembrar que alguns juízes têm, mais do que outros, a inclinação para revolver e reinterpretar os fatos do caso em julgamento).

Há até quem diga, com boa dose de razão, que, para fins de convencimento, a narrativa dos fatos, em uma peça jurídica, importa muito mais que a fundamentação de direito propriamente dita. Não tenho dúvida de que isso vale para as petições produzidas pelos procuradores das partes, assim como para as sustentações orais realizadas, que possuem um desiderato essencialmente argumentativo. Mas vale também, em boa medida, para as decisões judiciais. Realmente, via de regra, o direito já é conhecido pelos operadores do direito; os fatos, não. E uma exitosa exposição destes terá um grande peso na qualidade da decisão tomada.

Na verdade, no discurso judiciário, a narrativa se apresenta como uma premissa à fundamentação, mas também como uma grande oportunidade para uma argumentação/persuasão disfarçada. Premissa porque, como alerta Víctor Gabriel Rodríguez, “é dos fatos que surgem os direcionamentos da argumentação, e as informações necessárias para que o interlocutor a compreenda e, logo, a aceite; e grande oportunidade porque, ainda que não admita uma atividade suasória expressa, tem a narrativa, diluído em seu conteúdo, grande poder de persuasão, ao informar o interlocutor para que ele aceite uma versão dos fatos verdadeira e verossímil, que contribua para a conclusão a ser apresentada no momento argumentativo próprio”.

Dessa “oportunidade” pode e deve fazer uso o advogado, mas não o juiz (sobretudo se o faz deliberadamente). Bom, pelo menos é assim que eu penso.

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