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Nei Leandro, 66

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Pra começo de conversa – e que conversa! – recebo e abro antes do café da primeira manhã carta de Sanderson Negreiros.  O mensageiro madrugou na campainha da Heráclito Vilar para o espanto dos derradeiros bem-te-vis que rapidamente voaram do meu pé de Aroeira na direção do flamboaiã vermelho plantado por Luís Carlos Guimarães, na calçada do outro lado da rua. O poeta, em letra manuscrita, caligrafia elegante e firme, redonda como uma valsa de antigamente, aprendida nas aulas do velho seminário da Campos Sales de janelas abertas para os morros virgens do Tirol, saúda no seu bilhete-carta, os 66 anos do escritor Ney Leandro de Castro, seu companheiro de peladas no areal da rua da Estrela, veredas descendo para o Riacho do Baldo, a guerra com a Alemanha havia  acabado pouco tempo atrás e Natal já não tinha mais os soldados norte-americanos acantonados por nossas esquinas. Com a palavra, senhoras e senhores, Sanderson Negreiros, que grava Ney com Y, como exige a nobreza das luminosas amizades:

“Amigo Woden:

Prometi-lhe, ontem, este bilhete, escrito mesmo à mão. Bilhete em computador é muita petulância. Mas o que quero mesmo assinalar é o seguinte: Ney Leandro de Castro completa, domingo próximo (hoje), 66 anos de idade. Uma semana quase depois que Luís Carlos Guimarães chegaria, se estivesse entre nós, às 72 primaveras ou verões. Ninguém nota, com a ênfase necessária, que Ney encontra a chã da serra, ele que só viveu somente no litoral. Acima de tudo, vê seu romance sobre Ojuara, consagrado definitivamente, transformando-se em filme, com música de Caetano. Como nós dois nos conhecemos – somos da mesma idade -, desde a adolescência da Rua Estrela, depois Rua José de Alencar, e fui-lhe testemunha dos longos cursos e recursos de sua vida inteira, quero fazer para ele elogio mais eloqüente, mas menos acadêmico, de seu talento, sobretudo do seu instinto de disciplina, o mais importante da minha geração: Tem sido grande como poeta, ficcionista, contista, publicitário, e, sobretudo, amigo generoso e solidário.

Quando mais moço, podia ter um espírito mais arrebatado, até briguento, segundo seu biógrafo não-oficial, que era Luís Carlos Guimarães, nosso eternamente e insubstituível Lula, como está no epitáfio de todos os que conheceram o poeta que foi eleito, certa vez, vereador em Currais Novos, e quando casou com Leda, para ajudar nas finanças, foi professor na terra de Padre Ausônio, e me escreveu, certa vez, pedindo uns livros de Estatística. E eu respondi em telegrama: “Tenho horror à Estatística. Ensine pelo menos Filosofia da Estatística.” Para seus amigos, de Lula e Ney, resta a grande saudade para o primeiro e a alegria pela vitória do segundo, que devia estar fazendo Ioga também para perder uns seis quilos que já adquiriu nesta sua atual presença natalense.

Quanto à mosca no meu olho, é conseqüência dessa mania besta de ler, não cinco jornais e ver tantos canais de TV, mas de ler por horas inteiras. E você não brinque, que está despontando, marcha batida, para os 70 anos, e vai precisar muito de Ioga, meditação Zen e outras complacências.

Em TV, só assisto futebol. E umas moças bonitas, altas, verdadeiras colunatas gregas, que jogam vôlei. A beleza dói, dizia Gilberto Amado. Agradeço o espaço matinal de sua coluna, que dura o tempo das rosas de Malherbe – o tempo mesmo de uma manhã. Abraços de Sanderson, extensivos a Alex Nascimento (quando estiver com ele), que mais uma vez desapareceu, depois de uma gripe que o deixou na lona.

Sanderson Negreiros. 26 de maio de 2006.”

Todos os sertões

Leio na Revista do Sindi, editada em Uberaba, Minas, artigo de Manoel Dantas Vilar Filho, Manelito, com um titulo bem roseano: “Sertão Definitivo”. Muito  do apropriado para estes tempos em que se comemoram os 50 anos da primeira edição de “Grandes Sertões: Veredas”, obra definitiva de João Guimarães Rosa, que já sentenciava nas primeiras linhas que o sertão não tem tamanho, porque “o sertão está em toda a parte”. O sertão de Manelito está no semi-árido nordestino que, aqui e acolá, oferece umas parecenças com os gerais que fazem o sertão de Minas, das bandas do rio São Francisco encostando com a Bahia. Os  dois sertões de muitos bois e de muitas cabras.

Leio os escritos de Manoel como estivesse ouvindo aquelas prosas nos alpendres de Carnaúba, sua fazenda duas vezes centenária cortada pelo rio Taperoá, cariris velhos da Paraíba, forte sotaque sertanejo temperado de sabedoria:

– Como acontece no resto do mundo, também aqui se acredita que cada região fisiográfica tem suas raças animais apropriadas, definidas, puras, funcionais e bem referidas. Cada clima, cada latitude, cada chão, condicionam – a seu modo – o tipo de bicho (e dizem: até o tipo de gente) que se harmoniza com seu jeito natural, seu sol e suas ervas de chuvas, seus sais, suas temperaturas e suas incertezas, seus capins, seus fenos e suas folhas secas caídas. Nas terras de águas incertas do Nordeste não podia ser diferente…

O encanto do escritor

Fiquei sabendo pelo livro de Cremilda de Araújo Medina, “Sonha Mamana África”, Edições Epopéia, 1987, me emprestado há anos por Carlão (Carlos de Souza) que o escritor angolano Luandino Vieira, que acaba de ganhar o Premio Camões (100 mil euros) e recusou recebê-lo, encantou-se lendo a prosa de João Guimarães Rosa. O escritor estava preso (lutara pela libertação de Angola) num campo de concentração de Tarrafal, em Cabo Verde, entre 1964 e 1972, quando chegou às suas mãos o livro “Sagarana”.  Conta Cremilda:

– “… Um dia, mais tarde, na cadeia, encontrou-se com “Sagarana”. Não leu por inteiro, bastou a primeira página de Guimarães Rosa para o perturbar. Fechou o livro, matutou muito e fez-se luz: ah, afinal, a gente pode inventar a linguagem…

– Rosa desbloqueou definitivamente o escritor angolano. Que se lixe, o padrão, eu posso criar – existe a palavra musseque? Existe. Então eu posso escrever mussequista, mussequético. (…) Luandino Vieira ama as virtualidades humanas da palavra, procura-as ludicamente.”

Pego um morcego no bilhete de Sanderson – o bilhete maior já escrito por estas ribeiras – e assino embaixo tudo que ele disse de Nei Leandro de Castro. E como João Guimarães Rosa foi citado não sei quantas vezes nestas mal traçadas linhas, espano a memória para lembrar que o nosso Nei foi dos primeiros ensaístas brasileiros a estudar a linguagem do grande escritor com o livro “Universo e Vocabulário do Grande Sertão”, editado em 1970 pela José Olímpio Editora e incluído na Coleção Documentos Brasileiros. O livro ganhou o Prêmio Mário de Andrade, do Instituto Nacional do Livro, depois de ter ganho, também, o Prêmio Luís da Câmara Cascudo, da Prefeitura de Natal, 1967. Nei começou a trabalhar no livro em 1965, nove anos depois da primeira edição de Grande Sertão: Veredas. Tinha 25 anos de idade. Lá se vão 41…

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