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Nem Cícero, nem César

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN

Foi numa tarde calorenta deste março. Quase não ventava. O tempo parecia indiferente à vida e à natureza. Não havia uma única nuvem no céu, o qual mudava lentamente de cor: do azul para o violeta do entardecer. Cheguei com aquela disposição de esparramar-me na “cadeira de papai” e continuar a releitura desse notável e instigante “Franklin e Winston”, do escritor norte-americano Jon Meacham. Confesso que o filme “O destino de uma nação” e a leitura do livro com o mesmo título (escrito pelo diretor e roteirista do filme), suscitaram-me interesse para reler o livro. O interfone tocou. Eram nove ex-alunos de uma turma de Direito da UFRN, para quem lecionei durante seis meses. A turma me honrou e me emocionou ao escolher-me, por unanimidade, seu patrono. Já faz algum tempo. No grupo estavam magistrados, promotores, advogados e um empresário. Disseram-me que queriam manter comigo uma daquelas conversas posteriores às aulas, quando abordávamos temas variados, complexos e existenciais. Naquele instante, lembrei-me do saudoso primo e professor José Ildefonso Emerenciano, que, na velha Faculdade de Direito, sempre com bonomia, dialogava com alunos de todas as turmas. O que os meus ilustres visitantes queriam? Conversar, discutir, questionar e avaliar a crise brasileira. Submeto aos leitores alguns trechos da conversa. Inicialmente invoquei dois ensinamentos esquecidos ou subestimados hoje em dia. O primeiro do filósofo George Santayana: “Os que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”. O outro é de Winston Churchill: “O preço da grandeza é a responsabilidade”. Infelizmente, a irresponsabilidade no Brasil é subliminarmente incentivada, sem cessar, pela televisão. Pensemos nisso…

Há personagens que tipificam, ao longo da História, posturas na vida pública. Marco Túlio Cícero, advogado, pensador e escritor, viveu na Roma republicana, anterior aos Césares. Encarnou a defesa da República. Amargou diversas vezes o exílio e teve um fim trágico e cruel. Jamais abdicou dos seus princípios. Tancredo Neves, em discurso de homenagem póstuma a Juscelino Kubitschek, resumiu a vida de contínua imolação do tribuno romano: “Cícero, cuja cabeça decepada, colocada no rostro do forum romano, continua sendo, através dos séculos, o mais veemente protesto contra os delírios da força e as insânias da truculência, antes curtira por vezes o exílio, enfrentando-o com dignidade e altivez”. Sua melhor biografia é do italiano Maffio Maffii (“Cícero e seu drama político”), mas a romancista, arqueóloga e historiadora Janet Taylor Caldwell reconstituiu magistralmente sua vida e sua época em “Um pilar de ferro”. Cícero sustentava que a coisa pública é impessoal, insusceptível de proveitos individuais, exclusivistas e excludentes. Tudo dependia da submissão do poder à lei: “O poder e a lei não são sinônimos. Na verdade, frequentemente são opostos e irreconciliáveis”. Nas “Catilinárias” se antecipou em 1800 anos ao Direito de Rebelião da Revolução Americana: “Os homens de boa vontade, se desejarem sobreviver como nação, deverão destruir esse governo que tenta determinar por capricho, infringindo a lei”. Entretanto, nos últimos dez anos, o escritor inglês Robert Harris escreveu uma trilogia sobre Cícero, da qual os dois primeiros volumes foram lançados pela Bertrand do Brasil. Seus títulos: “Imperium” e “Lustrum”.  O terceiro, intitulado “Dictator”, adquiri recentemente em Lisboa (editado pela Editorial Presença) e já concluí sua leitura. O jornal britânico “The Guardian” assim avaliou a obra: “Maravilhoso. Depois da publicação de Imperium e Lustrum, surge finalmente o muito aguardado Dictator, o último volume da trilogia de Robert Harris, dedicada â figura de Cícero. Um grandioso romance histórico que nos dá a conhecer um homem brilhante e imperfeito, temeroso e corajoso, protagonista de um dos momentos mais conturbados da Roma antiga: o fim da República”. Entre tantas reflexões de Cícero, há uma que é uma espécie de advertência para os magistrados e membros do Ministério Público no Brasil, sobretudo nos dias atuais: “nenhum magistrado ou executor da lei pode negligenciar sua postura inflexível de serenidade, prudência, imparcialidade, vida discreta e hábitos austeros”. Eis uma sentença atemporal. Nada a acrescentar. 

Caio Júlio César é um dos homens mais estudados na História. Há quem diga que, se ele não tivesse vivido, não existiria latinidade. Há um certo exagero, mas César, como conquistador, incorporou a Roma territórios e povos que se estendiam da Romênia (“Ponto Euxino”) ao Egito. Foi estadista e escritor, mas era autoritário e incontrolavelmente ambicioso. Tinha ampla percepção dos fins do governo e da coisa pública. Mas ninguém superou William Shakespeare, na tragédia “Júlio César”, captando-lhe o caráter e a personalidade. Ao ser assassinado, era ditador e cônsul vitalício. Foi, de certa maneira, a antítese de Cícero. Mas o seu algoz foi Marco Antônio, por vingança e inveja. Segundo Shakespeare, uma nutre a outra.

A crise brasileira reside, fundamentalmente, na falta de compromisso com o bem comum. Alcança contingentes expressivos nos Poderes e órgãos públicos. A nação reclama mudanças institucionais, éticas e morais. Na conversa com meus amigos, alunos na década de oitenta, escolhi aqueles dois personagens (Cícero e César) para estabelecer uma espécie de contraponto e caracterizar as opções de um novo modelo político-institucional para o Brasil. Cícero enfeixa uma alternativa democrática, republicana, submetida ao Direito, sem abuso de autoridade de qualquer natureza, cargo ou função. Enquanto César explicita caminhos autoritários, mesmo aqueles travestidos de “democráticos” ou “populares”, fundados no culto às personalidades que referenciam o Estado e as instituições. O Brasil está agrilhoado ao atual sistema político-partidário. Uma palavra o define muito bem: é insano. A eleição proporcional, que se processará mais uma vez, germina, em termos gerais, eleitos falsos, despreparados e ilegítimos. Infelizmente nada mudou essencialmente.    

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