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No Grande Ponto

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Sanderson Negreiros
Escritor

Depois de quase quarenta anos ausentes destes ares do Natal, eis que ele volta em busca das raízes. Olha o Grande Ponto e faz a pergunta atávica: – Onde estão todos eles, que aqui albergavam, guerreiros da “belle époque” dos anos 50? O poeta Manuel responde da calçada de um banco: “Estão todos deitados, dormindo profundamente”. Aqui neste chão – e indicou com o dedo carcomido pela nicotina – Tróia foi. Ali, e apontou enxugando o suor da testa – retumbaram hinos. A antiga sorveteria Oásis ficou suspensa na lembrança. Aqui, era um bar, aberto dia e noite, onde o professor Ulisses de Góis tomava uma média matinal depois da missa e, à noite, na noite profunda e natalense, Walflan de Queiroz recitava Rimbaud, Antônio Pinto falava sobre Anatole France, Ticiano Duarte interrogava a cidade provinciana com Woden, e Luís Carlos Guimarães recitou um seu primeiro poema, inaugural: “Aqui jaz um menino azul, tragicamente desaparecido num desastre de velocípede”. E Joanilo concluía um soneto.

Ah! O Grande Ponto, por onde Djalma Maranhão desfilava num jipe de guerra, parando a rua com sua mão pesada para o papo furta-tempo, rindo e cobrando, de vez em quando, providencias a um auxiliar discreto!

Nessa paisagem fora do tempo e do espaço, procurou se situar. Alguém passava em passo rápido e mão em gesto tonitruante: será Meira Pires? E aquele poeta, alto e magro, de olhos dilatados, falando manso e germinativo, será José Patriota, o grande Zé, a maior figura humana dos anos 50 de sua geração, que foi morrer num desastre na estrada de Santos?

Ninguém conhecido, uns morridos, outros que morreram. Eis quando sua solidão floresceu, no instante que ele nunca esperara: bem perto dele, uma já senhora, com jeito matriarcal, trafega, passa, pisa, repassa, repisa, caminha e diz como no verso de Drummond: Stop, a vida parou! Era sua ex-noiva, de tantos anos passados, o grande amor de sua vida exasperada, de atribulações existenciais malditas e insuperáveis.

Senhor, isso não é coincidência… Depois de tanto tempo sem retornar à sua adolescência natalense, eis que a visão o perturba infinitamente. Ele queria rever tudo e todos, menos a noiva, fatal. Pois todos sumiram e ela reaparece, trazida por um destino imprevisto, extremamente impetuoso. Era a Armilavda, do poema de Murilo Mendes. A Hemengarda, do poeta Ledo Ivo. Era a pessoa que ele mais amara e que aparecia à sua frente. Podia ser um pesadelo. Fechou os olhos varias vezes – cada vez mais ela se afirmava em sua visão. Embora ainda moço, com o coração enfartado, pensou: agora vou morrer. Não morreu. Ela olhou, fez que não via – e riu um riso conspirador para a mocinha, possivelmente a filha, que a acompanhava. O que terá dito ela? Ficou a pensar. Mas o riso é o mesmo, belo e exemplar como a manhã de verão – assim disse em péssimo e ardoroso verso há quarenta anos atrás.

Casou, mas pode ser que tenha se separado. Engordou muito, muito mesmo, sem aquelas formas que faziam dela uma aparição de beleza inesquecível, única mulher naquela época – que fora comparada a Marta Rocha. Mesmo assim, o rosto carregava singular presença de traços gregos – era a única coisa que podia pensar. Guardou o perfil, mesmo ela passando na rapidez de uma rua congestionada. Um perfil só possível de ser desenhado por Boticelli. E por que ela não parou para cumprimentá-lo? Será por causa do marido vingador e ciumento? Há dois anos, num bulevar em Montparnasse, ele a viu, parecidíssima: mas era uma francesa, irmã gêmea. Quase outro infarto.

Agora, em pleno Grande Ponto, 4 horas da tarde do mês de julho, sozinho, sem encontrar um antigo colega, amigo de geração, dantanho, sentindo já o peso dos 70 anos, cabelos brancos, empresário dito vitorioso, encontra a mulher que realmente metabolizou sua vida, a única certeza de sua sensibilidade humana. Será que ela ainda gosta de ouvir “Mariana”, de Caymmi? Vou perguntar, mas as pernas não obedecem. Estão pesadas demais. Vou perguntar alguma coisa. Vou lhe falar. Não consegue andar. Na esquina, ela vira o rosto, ainda bonito, e lhe ri o mesmo riso adolescente, que fazia com que as manhãs fossem belas e eternas.

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