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No mundo de Pinturas

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Woden Madruga [[email protected]]

No meio da semana, já havia terminada a Festa do Boi coisa de uns quatro dias, me chega carta do doutor Paulo Balá, que foi homenageado no evento e cujo discurso ainda é comentado pelos criadores e expositores que andavam por lá.  Na carta, o ilustre missivista não fala sobre a exposição realizada no Parque Aristófanes Fernandes, mas conta, com riqueza de detalhes e com o estilo de consagrado escritor, um pouco da história de sua Fazenda Pinturas, cuja casa senhorial, erguida sobre um lajedo, ostenta 26 janelas e 18 portas feitas de cumuru, uma joia da arquitetura do sertão do Seridó. Passo a palavra ao Senhor das Pinturas:

“Você quer, Woden, notícias lá de nós? Não seja por isso…

Indo de Currais Novos para Acari, no quilômetro 20, entre à direita e dali a6 km está a casa sede da fazenda Pinturas que se limita ao Nascente com terras dos herdeiros dos irmãos Silvino Bezerra Filho e José Geraldo Bezerra; ao Poente com terras de Manoel Pereira da Silva e dos Nunes; ao Sul com terras de Dácio Pereira de Brito e Félix Medeiros e ao Norte com terras de herdeiros de Jaime Pereira de Araújo e Antônio Medeiros Costa, perfazendo uma área de 640 h.

O nome decorre e uma inscrição em baixo relevo na face plana de uma pedra, não passando de ½ m2, em baixo relevo, mas sem um só aspecto das inscrições rupestres. O pesquisador Oswaldo de Souza disse ser aquilo sem valia, mas Olavo de Medeiros Brito encontrou vestígios da escrita fenícia. Certo é que os antigos deram ao local o nome de Pedra do Letreiro ou Cachoeira da Letra, por onde passa o riacho em desnível. Dali derivou o nome Pinturas.

A produção da terra sempre foi o algodão mocó e as culturas de cerqueiro como feijão, milho, batata e banana, e o aproveitamento de plantas nativas como a borracha da maniçoba com o seu leito fedorento e a oiticica com as suas sementes cheirosas. E o que vinha do gado: carne, leite e seus derivado. O que hoje se produz vem da pecuária com raças de dupla aptidão: carne leite.

Pertenceu ao meu tio-avô José Sancho de Araújo até 1920 quando, por morte, passou aos seus herdeiros; destes, em 1934, por compra passou ao seu sobrinho Silvino Adonias Bezerra e deste a mim, em 1965, por herança. É provável que Zé Sancho tenha comprado as terras a Tomé, antigo habitante do lugar.

O gado é a atividade econômica em grande parte da região. Há animais de trabalho: cavalos e mulos e jumentos. E um terreiro de galinha.

O vaqueiro, em trabalho, veste roupa de couro composta por chapéu, guarda-peito, perneiras e sapatos, tudo de couro, e esporas. Mestre dessa arte, para fazer bem feito, hoje é raro nos sertões do Seridó. Dos vaqueiros, passaram por ali seu Neco, o irmão Sebastião da Viúva e Antônio Medeiros. Geraldo Paz está passando enquanto Zé das Pinturas vai assumindo o lugar.

A casa com telhado de muitas águas, áreas livres, paredes grossas de pedra e/ou de tijolo, sobre lajedo inclinado, biqueira curta, pé direito baixo, cimentada, assoalhada, com eira e beira, sem alpendre, com quatro salões, dez quartos, quatro banheiros, copa e cozinha, despensa, ripas de arame, teto atijolado em determinados cômodos, estilo vindo dos mouros através da península ibérica onde eles se instalaram na Idade Média. São 26 janelas e 18 portas feitas de cumuru (‘Dipteryx odorata’), madeira daquelas serras; 132 armadores o que daria para armar 66 redes e 137 tornos de pendurar alguma coisa. Na cobertura uma chaminé para o forno de fazer queijo, e duas para o fogão a lenha. Seu construtor foi o mestre Francisco Esteves Vilaverde (1888-1971), nascido em Pontevedra, na Espanha. O acesso a ela é por rampas e batentes e a sua construção se arrastou por três anos, de 1913 a 1915 sendo, portanto, por esses tempos, secular, dispondo de energia, água encanada e telefone.

Festejos não há. Fogueira de São João, sim, e até uma cascavel ferida a pauladas, jogada dentro do fogo, espalhou brasa pra todo lado. De resto, vez perdida, em tempos idos, Chico Souza aparecia para tocar rabeca.

Temos água, de cacimba, de tanque e de açude. Do olho d’água do Zé Virgínio, na Serra dos Bois, a água é permanente, porém, pouca. Os açudes nas longas estiagens secam. Poços tubulares movidos a cata-vento têm garantido o abastecimento e a cisterna de 80 mil litros, abastecida com água das chuvas caídas no telhado, garante o consumo da casa.

Estamos lá pelo Carnaval, na Semana Santa, nas noites de São João, em fins de semana. Morando tem um compadre com o filho, um gerente e a esposa, o vaqueiro com a mulher e o casal de filhos, todos em casa de alvenaria com água encanada e luz elétrica.

O ferro da fazenda é um só, herança do meu bisavô paterno. A letra do município é um S com uma puxada no meio.

O tempo de seca é ingrata e as dificuldades se aprofundam na medida em que as chuvas não voltam. Em regra, o rebanho é retirado de onde não tem mais nada para onde tenha alguma coisa, mas como tudo vai de minguante até a água vai sumindo. O sertão, meu amigo, melhor viveria se não fosse o governo a dar esmola ao invés de uma política determinada e permanente de convivência com as estiagens. Para alimentar o rebanho temos o sodoro, nome dado ao xiquexique e ao cardeiro, queimados os espinhos.

O homem estará sempre preso à terra onde deixou o imbigo. Quando sai carrega o desejo de voltar. De reviver o sol a se pôr e a barra a quebrar. O canto do galo e do xexéu no amanhecer do dia. O cheiro do café fumegando na panela. O aboio – uma cantiga às vezes triste, embiocando nas oiças. Sim, as vaquejadas, um patrimônio nosso… O pedido à padroeira para chegar o inverno. As lembranças alegres. As amargas. A história do chão amado. As tradições. Em tudo, querência e encantamento. Saudade em tudo. E na fibra resistente do sertanejo a esperança viva e quente, que nem brasa de angico, de melhores coisas no amanhã. As mãos limpas, sempre limpas.

O sertão não morre porque está em cada um de nós.

Até outro dia,

Paulo Balá Bezerra

Natal, 17 de outubro de 2016. Aniversário do finado Zezé – 91 anos.

Poesia
“Nunca ouvi as grandes orquestras sinfônicas/ regidas pelos grandes maestros internacionais/ Mas escutei o toque do cego/ das feiras nordestinas/ como se uma lágrima estivesse rolando/ na face de todos os cegos do mundo” (Do poeta José Bezerra Gomes, em seu poema O Cântico da Terra).

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