quinta-feira, 25 de abril, 2024
25.1 C
Natal
quinta-feira, 25 de abril, 2024

No rumo das estrelas

- Publicidade -
Cláudio Emerenciano
[Professor da UFRN]
A cidade dorme. Não sei quantos, no seu recolhimento, desfrutam a paz e se constituem em pontos de luz. Esses são expressões e referências da grandeza humana, de sua beleza, de sua espiritualidade e de sua vocação transcendental. Enquanto outros tantos, infelizmente, por opção ou recusa, abrigam em seu ser as trevas. Convertem-se em instrumentos do mal, que se revela, inclementemente, através das múltiplas manifestações de violência, injustiça, crueldade, mentira, hipocrisia, ambição, vaidade, egoísmo, indiferença e falsidade. Qualquer cidadela, em sua substância humana, é síntese do mundo. Mas o silêncio que envolve a cidade, como uma espécie de cântico suave, irresistível e inebriante, exorta noctívagos, cultores de visões em madrugadas e auroras, a fazer voar o pensamento, as reflexões, os sonhos e as esperanças. Meu espírito se alça às alturas. Percorre culturas e nações. Contempla o mundo conturbado, paradoxal, confuso, incerto e inseguro. Mas se retempera ante a fé de bilhões que, acreditando em Deus e em seu amor infinito, identificam o sentido real da condição humana. Pois nada substitui o amor para identificá-la com Deus.

 Infelizmente há homens que ignoram ou esquecem as evidências de sua destinação. A vida proporciona a cada um momentos de silêncio e reflexão, quaisquer que sejam suas circunstâncias: justas ou iníquas, dignas ou aviltantes, ternas ou brutais, pacíficas ou violentas, felizes ou amargas. Esses instantes, injustificadamente perdidos ou desperdiçados pela grande maioria, apontam o caminho das estrelas. Libertam o homem de si mesmo. Exorcizam coisas passadas, amarguras, contradições, erros, maldades, egoísmos, ressentimentos, indiferenças e vaidades. Permitem vislumbrar, descortinar e assimilar o sentido e o conteúdo universal da vida: o amor. É o homem novo, no dizer de São Paulo. Incorporado indefinidamente pelo Cristo à plenitude da Luz: “Eu sou a Luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida” (João 8,12).  Desfrutará com Deus do amor à vida e a tudo que integra a Criação. Esse homem tem a missão de erradicar a injustiça, a hipocrisia, o cinismo, a crueldade, as desigualdades, a desfaçatez e a mentira. Vergonhas que infelicitam até hoje a humanidade. Evidentes no Brasil. Especialmente nos dias atuais. Contradições e paradoxos que desafiam, desvirtuam e aviltam o sentido do viver.

Quando eu tinha três, ou quatro anos, espantava-me o espetáculo, à noite, da luminosidade de holofotes devassando os céus de Natal. Feixes de luz pareciam não ter fim. A percepção de uma criança ampliava ainda mais as proporções daquilo. A Guerra já terminara. A explicação: sinais para algum avião que emitira um SOS. A cidade era precariamente iluminada. Dominava-me certa frustração. Já naquele tempo. Pois enquanto não me punham para dormir, encantava-me olhar as estrelas. Com o passar dos anos, adolescente, adulto, agora setuagenário e avô, sempre me arrebato ao contemplar os céus à noite. Com luar ou sem luar. É como se o meu ser tivesse asas, voasse, contemplando as incontáveis e surpreendentes manifestações da condição humana. Em todos os tempos e lugares. Culturas e nações. Nos campos e nas cidades. Nos vilarejos mais humildes, simples, onde as vaidades inexistem. Até aos fantásticos e impactantes centros cosmopolitas, onde impessoalidade, solidão e anonimato desfiguram a vida, conspurcando das relações humanas a solidariedade, a caridade e a humildade. Chamo a isso, de mim para mim, de minha janela para o mundo. Sempre a detive. É uma dádiva de Deus. Muitas coisas me fascinam nessas reflexões, que também me remetem para o sentido transcendental da vida, do infinito, enfim, do Universo. Imagino o jovem Davi, contemplando as estrelas nas noites frias e silenciosas das colinas na Palestina. Enquanto pastoreava suas ovelhas, conversava com Deus. Cantava seus salmos. Inebriava a madrugada com sons suaves de sua harpa e de sua voz. Antoine de Saint-Exupéry, Thomas Merton e Teilhard de Chardin reafirmaram algo que os homens, em sua estupidez, persistem em ignorar: a vida somente se desvenda plenamente com amor e paz de espírito. A ciência, destituída de sentimentos, jamais alcançará a Luz: dom dos justos e humildes de coração. A dimensão cósmica do amor.

Há uma dúvida hamletiana (Shakespeare) na percepção humana. No âmbito das grandes cidades e dos vilarejos mais distantes. O homem do campo desfruta, mais generosamente, do percurso do dia e da noite. O cidadão urbano, na prefiguração de Eça de Queiroz em “A Cidade e as Serras”, sublima o progresso e o bem-estar. Mas deixa de vivenciar, de maneira tranquila, lenta e lucidamente, do sentido da vida, dos laços e das pequenas coisas. Incertezas remetem para um enigma: – Qual é o espírito desses novos tempos? E seus objetivos? Qual é o fim que se pretende alcançar? Os pequenos rincões desfrutam de paz, enquanto as grandes cidades…?  Talvez, por isso, Anatole France (agnóstico) em “Crainquebille” e François Mauriac (cristão) em “O Deserto do Amor” identificaram no desamor a causa básica da decadência moral. A dissolução de costumes e valores morais é realimentada pelo consumismo, enquanto os delitos e a impunidade, sobretudo de poderosos, deterioram as instituições. A corrupção se amplia nessa circunstância, tal qual bola de neve numa avalanche.

 A percepção da beleza na vida sedimenta os mais puros e transcendentes sentimentos. Há, na condição humana, junção, amálgama e simbiose entre o ver e o querer, o desejar e o fazer, o sonhar e o buscar, o nascer e o renascer. Os tempos atuais de pandemia não impedem, apesar de tudo, a inserção dos homens na real substância da vida. Pelo contrário. Pois se amplifica a consciência do amor e da dimensão do homem.

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas