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Nostalgia sem fim

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN
As alegrias coletivas exibem a alma de uma nação. Revelam suas características, seus sonhos, sua maneira de ser, agir, pensar e querer. Mas a fantasia, que reside na alma de cada pessoa, em seu coração (sentimentos) e em sua consciência (racionalidade), expressa o quanto o ser humano deseja vivenciar o que se convencionou chamar de fuga do real. Não é alucinação. Tampouco alteração psicológica de natureza individual ou coletiva.  Povos e culturas, em todos os tempos, concebem fantasias e formas de vivê-las. Nelas predominam aspectos aventurescos e românticos da vida. Há sempre o herói e atos de heroísmo. Antíteses da maldade e da injustiça. Como Rolando e os doze pares da França, Ivanhoé e D. Quixote, extravasam seu romantismo diante do mundo e da vida. Principalmente ao decantar o amor.  Nesse sentido, o livro “As mil e uma noites” é a mais fantástica, rica e fértil manifestação das mais belas fantasias concebidas, até hoje, pelo gênero humano. Essa obra e tantas outras, como “A Ilíada” e “A Odisseia” de Homero, as fábulas de Esopo, o Cântico dos Cânticos, atribuído a Salomão, a “Eneida” de Virgílio, devassaram os tempos, e, ainda hoje, inebriam, comovem, fascinam e inspiram gerações sem fim. Transmitiram-se inicialmente pela comunicação oral, num processo genuíno e enigmático de memorização. Depois a escrita, desde a mais rudimentar, empregando símbolos, sinais, imagens e hieróglifos, até o advento do alfabeto, em incontáveis idiomas e dialetos, incumbiu-se de preservá-las irreversivelmente para a posteridade. Eis as fontes que impregnaram as civilizações de fantasias, realimentando e renovando coletivamente a imaginação, os sentimentos, os devaneios, a ficção, a poesia, os encantamentos, as alegrias e tristezas, a pintura e a escultura, a música e a dança em todos os tempos. Até certas festividades, ainda hoje perpetuadas no universo da cultura popular de cada povo, refletem esse processo de transferência, que é um vínculo indestrutível entre as gerações. Ralph Linton, o grande antropólogo norte-americano, uma das grandes admirações do mestre Cascudo, dizia que os “donos do poder” jamais conseguiriam banir, eliminar, conter e sufocar o ritmo e a força desse liame entre gerações. Sua destruição implicaria no fim do mundo civilizado. Pois o presente é também o passado.

Entretanto, nem sempre a nostalgia é triste, melancólica, amarga ou penosa. É um vínculo. Revela a forma e o conteúdo da relação sentimental e espiritual com pessoas, circunstâncias, acontecimentos, instantes: pequenos ou grandes, anônimos ou públicos, íntimos ou exteriores, individuais ou coletivos, que possuem o caráter e a natureza da permanência. Não se pode dizer que a nostalgia esteja impregnada, invariavelmente, do sentimento de perda. A nostalgia é também saudade de coisas boas, ternas, elevadas, imperecíveis, imateriais. Remete-nos a momentos felizes, que crescem, revigoram-se e se ampliam no curso do tempo. Seu sentido se aviva ilimitadamente no culto de sua lembrança. Seu lugar é indisputável e singular: o coração, a alma e os sentimentos de cada um. Ninguém, mesmo tendo uma brutal, impiedosa, cruel e injusta trajetória de vida, jamais esquece ou deixa de desfrutar da lembrança de algo que lhe deu percepção de felicidade. Infundiu-lhe paz, calma, afeição, harmonia, serenidade, solicitude, tranqüilidade e beleza interior. Estado de espírito que subsiste e emerge em silêncio absoluto. Silêncio da alma. Silêncio das madrugadas nos campos. Silêncio do alvorecer no horizonte de oceanos, mares e rios. Silêncio melodioso da natureza. Apenas os galos o interrompem. Os cantos dos galos, dizia Machado de Assis, foram os campanários do Brasil colonial.  Esses cantos demarcam, paulatinamente, a ascensão da luz do dia sobre as trevas da noite. Até nos tempos do Cristo e de sua Paixão.   

A humanidade está submetida a uma vertente de ansiedades, incertezas, violências, insegurança, individualismos, indiferenças, agitações, antagonismos e contradições. A chamada planetização, ou globalização, invade e contamina tudo e todos. Não consagra princípios éticos e morais. Não proclama uma concepção de vida em defesa da dignidade de cada pessoa. Ignora pátria, língua, cultura, etnia, religião, passado, sonhos e ideais. Mas nem sempre foi ou será assim. Aqui e ali os homens reagem. Lutam. Contrapõem-se com o mais sublime em sua individualidade: a fé em Deus e a consciência da liberdade de pensar, querer, agir e sonhar. Sobrepõe-se, então, o sentimento do amor, que é ilimitado, indestrutível, elo dos homens entre si e sentido da Criação. A essência do amor é o Ser sempre em ascensão. Nunca o Ter.

Natal provinciana de 1958. Desde fins de fevereiro chovia intensamente. Paradoxalmente, uma seca dizimava o sertão. Mas, naqueles primeiros dias de março, as chuvas fizeram uma trégua. Mesmo assim, a cidade cheirava à terra molhada. Um inesquecível vento frio percorria seus bairros, ruas e avenidas. Naquela tarde, quando raios de sol penetravam, sutilmente, nas sombras de gigantescas arvores da Praça André de Albuquerque, eu lia, num banco, um dos volumes de “Guerra e Paz”. Pássaros cantavam harmoniosamente. Os sinos da antiga Catedral repicavam. Eram quatro horas da tarde. Uma mocinha, magra, morena de olhos verdes, com a farda da Escola Normal, desinibida, interrompeu-me para perguntar sobre o livro. Antes de responder-lhe, um rapazote, numa carroça puxada por um burro, parada ao lado do meio-fio, criticou-a por importunar-me. Disse-lhe: “Você não vê que ele está lendo em silêncio total?”. A mocinha, indisfarçavelmente sapeca, replicou: “O que tem o silêncio com a leitura?” O adolescente, antes de agitar as rédeas do burro e movimentar a carroça, sentenciou: “o silêncio é a melhor oração a Deus”. E foi embora. Nunca mais os vi. Mas, com doce nostalgia, para mim estão vivos a moça, o “pequeno homem” e o burro. Sempre…

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