Andreia Clara Galvão [Psicanalista]
Vou lhes contar uma história. Verdadeira. Talvez sobre uma mentira. Talvez… Mas também sobre algumas verdades. Certamente. Aliás, essa distinção entre mentira e verdade nem sempre é óbvia como é a distinção entre o branco e o preto. Vamos à história. Um dia, num tempo que já não sei quando, um rapaz que cuidava de vacas num sítio verde, fresco e de céu gigante e azul, veio me avisar que o garrote de meu irmão tinha morrido. Picado de cobra. Assim ele dizia. Fomos lá olhar o animal. Não vi nenhuma picada sobre o pelo malhado de branco e preto. Mas, segundo o rapaz, tem cobra que pica e não deixa marcas evidentes. Ademais, tinha o outro lado do garrote que jazia deitado. Sendo o bicho já grande, quase um boi , não seria nem um pouco simples vira-lo. Ele tinha uma corda amarrada ao pescoço e alguém sugeriu que o futuro boi poderia ter morrido porque havia enganchado a corda num toco. Ao tentar se desembaraçar, a corda teria sufocado o animal. É fato que ele deveria estar completamente solto para poder pastar livremente. O rapazinho falou que de modo algum isso teria acontecido. A morte do bicho, com toda certeza, havia sido de inteira responsabilidade das cobras que, vez em quando, por ali passavam.
Era preciso, pois, avisar ao dono do bicho. Detalhe importante: Esse era um garrote de raça especial, holandesa me parece. Meu irmão era jovem e como a maioria destes, praticamente não tinha dinheiro. Era muita peleja e dureza. Ainda bem que não faltavam os sonhos. Ele havia comprado o garrote, então bezerro, no esforço. O rapazinho que sabia disso ,estava verdadeiramente muito aflito… Acho que esta aflição era mesmo de verdade.“Mas afinal, quem controla cobras, não é mesmo? Ainda mais as venenosas… Letais! O menino ficasse tranquilo! Ele não podia dar conta de cobras. Então que sossegasse. O sossego dos justos.” Irmão, então, avisado pelo telefone. Triste, mas conformado. Logo agora… Fazer o que, não é? O que não tem remédio, remediado está.”_Tem a carne. Quer que guarde?” Não queria a carne. Quem quer carne envenenada por cobra? E se o veneno estivesse ativo ainda? O rapaz garantia que o veneno não faria mal nenhum. Certeza absoluta! O dono do bicho não quiz a carne. Na dúvida, a vida e a carne, decidi pela garantia nem tão garantida assim, da primeira. Não queremos a carne. “_Então posso chamar uns amigos?” “Pode. Se você garante que não faz mal a ninguém… “ De repente, muito de repente mesmo, era uma fila de gente. .” _Pessoal, todo mundo sabe que o garrote foi picado de cobra?”
O fato é que muita gente quis a carne. Veneno não era problema… Foi então, que aconteceu o que lhes contarei. O que para sempre ficou na memória. Eis a cena que se seguiu: Cortaram o coitado do garrote, tiraram o coro. E cortaram ele em pedaços. Entao, primeiro foi a fila dos homens, mulheres e crianças. Teve churrasco naquele dia. Em várias casas da redondeza. A seguir vieram os cachorros, que não se intrometiam na fila dos humanos. Ficaram ao longe. Esperando que eles saíssem. Os cães comeram o que era pequeno. Depois foram muitos urubus. Muitos e muitos que sobrevoavam, pousavam em torno. Mas só chegaram mesmo, depois da saída dos cães. Por ultimíssimo, pudemos ver as filas de formigas. Organizadíssimas . Em duas horas, não havia vestígio do ocorrido. Absolutamente inacreditável como não restou nenhum resíduo. A areia ficou como antes do acontecido. Limpinha, limpinha. Nem sangue. A única prova era o couro. Cena de Graciliano Ramos ou de Guimarães Rosa.
Até hoje fica a dúvida… Já ouvi diversas opiniões. Quanto mais escuto-as, menos sei. Teve mesmo cobra picando o garrote? Ninguém viu picada alguma… Ninguém passou mal pelas cercanias depois de comer a carne. Mentira, verdade, mentira sincera? E mais, será que as vezes mentira e verdade, são discussões produtivas? Deixo você com Carlos Drumond nesse poema chamado “Verdade”. Bonito e instigante. Para fazer-nos pensar. “A porta da verdade estava aberta/ mas só deixava passar /meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade/porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade./E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil/ E os dois meios perfis não coincidiam/Arrebentaram a porta/ Derrubaram a porta/Chegaram a um lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos/ Era dividida em duas metades, diferentes uma da outra/ Chegou-se a discutir qual a metade mais bela/As duas eram totalmente belas/Mas carecia optar/ Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.”