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O gato comeu o milhão da cultura

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CIRCO - Neil Moura, faria dez anos de espetáculo gratuitos

Se o gato que comeu o dinheiro da Fundação José Augusto tivesse noção do sacrifício dos artistas em bancar os projetos culturais tocados no Rio Grande do Norte passaria longe da água fria das festas de Momo nos próximos anos. 

Em tempos de “foliaduto”, a marchinha que ecoa nos ouvidos dos representantes da cultura local não é aquela cantada por Gal Costa (“onde está o dinheiro, o gato comeu…). É a marcha fúnebre.

Hoje, mais do que nunca, a indignação define o sentimento dos que vêm batalhando contra a burocracia das leis de incentivo ou na odisséia da captação de recursos junto à iniciativa privada.  Mas qual a dimensão do escândalo para a produção cultural do Estado? O que os artistas fariam se tivessem nas mãos de uma só vez, como ocorreu agora, um milhão e duzentos mil reais à disposição?

A TRIBUNA DO NORTE provocou vários representantes da música, teatro, cinema e literatura potiguar para constatar o óbvio: o dinheiro que sumiu da FJA seria muito útil para a cultura do Estado.

A Casa da Ribeira, que funciona há cinco anos na rua Frei Miguelino como um centro cultural e recebe exposições, espetáculos teatrais e de dança, shows musicais e sessões de cinema, é o maior exemplo de como o dinheiro foi desperdiçado.

O local sobrevive hoje da contribuição de seis empresas privadas, que doam mensalmente R$ 1.200 para a manutenção do espaço. Com os recursos desviados da FJA, o diretor da Casa, Gustavo Wanderley, admite que daria para manter o espaço por 11 anos seguidos. “Eu poderia escolher entre manter a Casa por 11 anos ou construir um espaço igual a esse com os mesmos equipamentos e estrutura. Na época, gastamos exatamente essa quantia”, disse.   

Ele aponta um “erro” de concepção por parte do Estado na produção da cultura local. E acredita que usaram a cultura para desviar a verba para outros fins. “Acontece que o Estado não pode ser produtor. Ele tem que promover a cultura, fomentar a educação. São coisas totalmente diferentes. Hoje, a gente observa o Estado como produtor de eventos. Outro ponto que vejo neste escândalo é que a classe artística não entra na legislação de licitação. Por isso fica muito à mercê da corrupção. O que parece é que usaram a cultura para cometer um crime e o fato da lei abrir mão da licitação facilitou muito isso. E ninguém questiona, sabe. Quem vai fazer o Auto de Natal e o Presente de Natal? Tinha que ter licitação para tudo”, defende.

O produtor cultural Anderson Foca, segue a mesma linha. E revela que como proprietário do selo Do Sol Records conseguiria lançar 200 novos trabalhos de bandas locais, além de organizar por 10 anos seguidos o festival independente DoSol que teve sua primeira edição no ano passado e reuniu 30 bandas de pop rock na rua Chile. Tudo isso com os recursos do contrato milionário da FJA.

Ele se diz revoltado com os resultados das investigações e detona a instituição que, segundo ele, nunca estendeu a mão aos artistas locais. “O mais vergonhoso disso tudo é que tirando a lei de incentivo, a FJA sempre alegou que estavam trabalhando sem verba para nada. Diziam que não tinham dinheiro, que os recursos eram poucos. Para você ter uma idéia tem vários artistas que tocam para o governo e ficam seis meses sem receber os cachês. Isso é ridículo”, desabafa.

Ainda no segmento musical, o idealizador do festival MADA, um dos três maiores festivais de música independente do País, Jomardo Jomas, contaria que também faria um “estrago” se pudesse dispor da verba.    

E admite que o impacto do escândalo pegou a classe artística no contrapé. “O fato é que quebrou as pernas de todo mundo. Quando acontece uma coisa dessa fica todo mundo sem entender o porquê. Eu faria três Madas com essa grana. E olha que esse ano serão 31 bandas e 18 Djs, além de toda a estrutura. Ou poderia optar por fazer dois Madas e  produzir cinco filmes de curta-metragem para rodar o país divulgando a cultura cinematográfica potiguar”, garante.

Produtores apontam soluções para a crise

O poder público nunca havia dado motivo para tanta desesperança no metier artístico. Mas há quem ainda tente amenizar os efeitos do problema e aponte soluções.

O produtor do projeto Seis & Meia, Willian Collier, acredita que a crise não pode interromper os verdadeiros projetos que vem sendo tocados pela mesma FJA. Mas admite as dificuldades. “Não pode parar tudo por conta disso. O Ribeira das Artes foi suspenso e tenho receio de que outros projetos bons que estavam sendo realizados também acabem. O Seis & Meia é o maior projeto da Fundação mas está tendo problemas. Desde quando retomamos os shows não recebemos um centavo da instituição. As atrações principais estão sendo pagas com o dinheiro dos patrocínios”, relatou. 

Outro que prevê ações para quando a poeira baixar é o produtor de eventos da Agenda Propaganda, Alexandre Maia. Ele defende a realização de shows com artistas nacionais gratuitos para o público potiguar. E afirma que com a mesma verba do “foliaduto” traria 15 grandes nomes da cultura do País para se apresentar em praça pública. “ Não existem atividades de cunho cultural sendo realizadas aqui no Estado. O governo patrocina apenas shows de Axé e sem expressão. Se a gente lembrar o histórico, vai ver que nos 400 anos da cidade veio o Leonardo. Acho que com esse dinheiro, daria para fazer muita coisa”, disse.

O cinema também se posicionou sobre o escândalo. O cineasta Rui Lopes que finaliza até dezembro  o curta “Chuva do Caju”, questiona o emprego da verba no carnaval. Para ele, os recursos da cultura devem ser empregados na cultura. “Acho que o governo não deveria patrocinar carnaval. Mas é uma opinião pessoal. Agora, com esse dinheiro, eu faria 25 curtas de 20 minutos como o que estou produzindo hoje”, admitiu.   

Dono do circo Grock faria “dez anos de espetáculos gratuitos”

Na esteira dos artistas que batalham para a realização dos projetos profissionais está o ator circense, Neil Moura, dono do circo Grock, montado no Largo do Machadão. Ele conta que pelo ritmo de trabalho dos últimos meses (das 6h às 24h),  não pôde acompanhar as notícias sobre o “foliaduto”, mas garante que faria 10 anos de espetáculos gratuitos com a trupe. “Eu quero distância dessa picuinha. Minha política é cultural, nunca dependi de governo para bancar meus sonhos. Mas com esse dinheiro eu montaria 10 estruturas como essa do circo Grock e montaria o espetáculo durante os 10 anos”, disse.

O recém-lançado “Da Bola de Pito ao Apito Final”, do jornalista e pesquisador Everaldo Lopes, também é exemplo de luta na produção cultural. Conseguiu lançar seu livro através da Lei Djalma Maranhão, com patrocínio da Petrobras. Sem esse caminho não teria conseguido: “Com um milhão eu faria 30 livros de pesquisa como aquele. Foram cinco anos de trabalho debruçados todos os dias em jornais velhos com risco de pegar fungos. Mas deu tudo certo. Lamento pela facilidade que se têm de desviar dinheiro público”, declarou.

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